![]() |
NOTA 9,0 Texto clássico ganha roupagem moderna sem deixar de ser épico, apresentando uma mocinha determinada, corajosa e ainda assim doce e romântica |
Os contos de fadas sempre foram
fontes de inspiração inesgotáveis para as mais deferentes formas de fazer arte
e o cinema explora ao máximo suas possibilidades. Do romance, passando pelo
drama e a comédia, chegando até a flertar com o suspense e o terror e,
obviamente, servindo de inspiração para animações, as clássicas histórias
infantis já sofreram diversas modificações ao longo dos anos e hoje é até
difícil reconhecer quais são as versões originais. Costumamos considerar como
oficiais as antigas adaptações da Disney e essa ideia é perpetuada de geração
para geração, mas na realidade tais produções talvez sejam as variantes mais
floreadas e distantes do primeiro tratamento dado aos contos de Branca de Neve,
Pinóquio e companhia bela. Ao longo dos anos, empresas menores também entraram
no ramo da animação e lançaram suas adaptações, modificando ainda mais as
histórias e nem sempre com resultados satisfatórios. No caso de Cinderela, o
crédito é dado ao romancista Charles Perrault que publicou o conto pela
primeira vez em 1697. Anos mais tarde, ele foi alterado sutilmente pelos irmãos
Jacob e Wilhelm Grimm e é justamente com a participação deles que o enredo de Para Sempre Cinderella começa a tomar forma. Da
década de 2000 em diante tornou-se comum os live actions, continuações e spin
offs dando sobrevida a textos clássicos, mas este filme não faz parte deste
movimento, foi lançado alguns anos antes O diretor Andy Tennant antecipou esse
modismo oferecendo uma versão mais realista do conto da gata borralheira e
desde o lançamento já se apresentava como um clássico romântico no melhor
estilo sessão da tarde e assim o passar dos anos veio a confirmar. A essência
da trama é basicamente a mesma do conto que costumamos ouvir quando crianças,
mas aqui temos o uso da metalinguagem para criar uma introdução original. Os irmãos
Grimm são convocados pela própria rainha da França (interpretada pela lendária
Jeanne Moreau) para irem ao palácio receberem seus elogios pessoalmente por
conta de seus auspiciosos trabalhos, contudo, ela contesta que eles não foram
realistas na forma como desenvolveram a história da simplória jovem que passou
sua infância e juventude sendo maltratada dentro de casa, mas conseguiu dar a
volta por cima e ser acolhida pela realeza.
A majestade então passa a narrar
o que de fato aconteceu à Danielle de Barbarac (Drew Barrymore), sua tataravó,
após o casamento de seu pai depois de muitos anos de luto pela morte da mãe da
jovem. Inicialmente a garota ficou radiante com a ideia de ganhar uma nova
figura materna e ainda duas irmãs postiças com quem poderia se divertir e
partilhar segredos, contudo, sua alegria dura pouco. Auguste (Jeroen Krabbé)
veio a falecer pouco tempo depois de desposar a baronesa Rudmilla (Anjelica
Houston), esta que revela-se cínica e cruel e não hesita em transformar a
enteada em sua criada. Jacqueline (Melanie Lynskey), uma de suas filhas
legítimas, tem bom coração e não concorda com várias atitudes da mãe, mas não
tem coragem de afrontá-la. Já a outra, Marguerite (Megan Dodds), é bastante
egoísta e só pensa em se casar com um nobre e a chance vem através de um
convite do jovem príncipe Henry (Dougray Scott), ou melhor, de sua família que
planeja um baile como pretexto para lhe arranjar uma noiva. A baronesa apoia
incondicionalmente a primogênita, estando disposta a conspirar, mentir e tudo o
mais que for necessário para vê-la ocupando o trono real. Todavia, o destino
acaba colocando Danielle no caminho do rapaz que se encanta pelo seu jeito
brejeiro, afinal ela não tem o comportamento enojado comum às princesas. Isso
mesmo. Ao salvar o príncipe de uma emboscada, a moça envergonhada não revela
sua real identidade e se apresenta como a condessa Nicole de Lancret, herdeira
de uma nobre família, o que pode colocar o romance em risco a qualquer momento.
Apesar das inovações e licenças poéticas, inclusive envolvendo a protagonista
em um relacionamento de amizade com o visionário pintor Leonardo Da Vinci
(Patrick Godfrey), aqui substituindo em partes o papel da fada madrinha que
fora descartada, é óbvio que o final feliz está garantido, afinal a obra foi
criada justamente para fazer o público estampar um sincero e prazeroso sorriso
no rosto e não há dúvidas que o objetivo é plenamente atingido. Tennant, que
assina o roteiro em parceria com Susannah Grant e Rick Parks, conseguiu o
perfeito equilíbrio entre manter a magia inerente ao conto sem deixar de ser
realista e ainda dialogar com a modernidade de modo sutil concentrando seus
esforços na criação de perfis verossímeis e atemporais. O longa mantém o
cenário da narrativa em época medieval, mas algumas mudanças consideráveis
foram feitas para aumentar o interesse do público e adicionar ao enredo certo
quê de modernidade.
As principais alterações foram
nos perfis e conflitos dos personagens. A delicada e lacrimosa Cinderela aqui
assume uma personalidade corajosa e que vai a luta, literalmente se preciso,
para alcançar seus objetivos. Já seu príncipe não tem nada de encantado e
parece mais preocupado em se manter protegido sob os cuidados da família real.
Os dois vivem em universos completamente diferentes e também agem e encaram
desafios de maneiras opostas, mas mesmo assim eles se apaixonam. Falar que se
complementam seria exagero já que o nobre personagem não tem um desenvolvimento
aprofundado. Na verdade, sua figura nas inúmeras adaptações do conto é bastante
restrita, surge mesmo apenas como mero interesse romântico da mocinha, porém, a
interpretação de Scott também não aspira grandes projeções. A vivacidade que
Barrymore injeta em Danielle também ajuda a ofuscar o rapaz. Dosando bem as
nuances de drama e humor, sua composição nos faz esquecer a aura de sofrimento
que envolve a gata borralheira e mesmo
rolando na lama de um chiqueiro, subindo em árvores ou enfrentando um bando de
ciganos, a jovem de personalidade forte não deixa de exalar doçura e simpatia.
A atriz brilha e encanta toda vez que surge na tela, mas seus melhores momentos
são quando divide a cena com Houston, sequências de maior peso dramático.
Apesar de tudo que já sofrera, percebemos que Danielle tenta ao máximo
conquistar uma palavra ou gesto de afeto da madrasta, esta que a certa altura
até esboça algum tipo de carinho, porém, rapidamente recobra sua personalidade amargurada.
A veterana atriz parece ter um dom especial para dar vida a tipos negativos e
rancorosos e com modo de falar contido e enérgico, suas falas soam imperativas
e cheias de sarcasmo e sadismo. Numa atuação magistral, não é exagero dizer que
este foi seu último grande trabalho, sendo que depois passou a se dedicar em
pequenos papeis em filmes alternativos ou como coadjuvante de luxo em fitas água-com-açúcar.
Com elementos técnicos irrepreensíveis, com destaque para os luxuosos figurinos
e a fotografia que tira o melhor proveito das locações e direção de arte, Para Sempre Cinderella é uma verdadeira aula
de como readaptar um clássico sem desagradar aos mais tradicionalistas, mas ao
mesmo tempo conquistando novas plateias. Suas duas horas de duração
passam agradavelmente aos olhos do público e jamais desejamos o soar das doze
badaladas para a magia não acabar.
Romance - 120 min - 1998
-->
Nenhum comentário:
Postar um comentário