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NOTA 9,0 Inspirado na cultura gótica e com estética de filme antigo, obra é um espetáculo visual, mas narrativamente mostra-se limitada e até previsível |
O cineasta Guillermo del Toro é
um visionário, não há dúvidas. Como ele poucos conseguem equilibrar conteúdo
narrativo com estética que ultrapassa os limites da imaginação. Transitando
entre o cinema independente, como no suspense A Espinha do Diabo, e os blockbusters americanos, como na aventura Círculo de Fogo, o mexicano consegui um
perfeito híbrido de estilos com sua obra-prima O Labirinto do Fauno, mescla de drama, fantasia e terror na qual os
atributos técnicos não apenas saltam aos olhos, mas reforçam suas importâncias
para contar uma boa história. Seguindo a mesma linha de raciocínio, A Colina Escarlate é um leve sopro de
criatividade e bom gosto em meio ao combalido, e por vezes grosseiro, gênero do
terror. Projeto acalentado por mais de uma década, o longa é calcado no estilo
gótico e uma declaração de amor ao estúdio Hammer, berço das produções de
horror entre as décadas de 1950 e 1970. Não por acaso o cenário principal é um
suntuoso casarão envolto em aura de mistério e melancolia, algo ressaltado pela
fotografia propositalmente envelhecida. A opção além de colaborar para o clima
de tensão constante, também destaca os elementos em vermelho carregados de
mensagens subliminares. À primeira vista a trama é bem simplória evocando o
tema-clichê da casa mal-assombrada, porém, como a protagonista Edith Cushing
(Mia Wasikowska) deixa claro em sua narração, esta não é uma história sobre
fantasmas e sim uma trama com a presença de seres do além, uma sutil diferença
na forma de se expressar, mas que faz toda a diferença narrativamente. Ela é
uma jovem aristocrata americana aspirante a escritora devota ao pai, o Sr.
Carter (Jim Beaver), e que se apaixona pelo misterioso Thomas Sharpe (Tom
Hiddleston), um lorde que apesar da banca de ricaço na verdade está
praticamente falido e busca alguém para financiar um projeto envolvendo a
extração de uma argila vermelha encontrada sob o solo de sua residência na
Inglaterra. Não demora muito e o rapaz desposa a garota e a leva para viver em
sua decadente mansão localizada na tal colina que dá nome à fita, porém, o
casal terá que dividir sua privacidade com Lucille (Jessica Chastain), a irmã
mais velha dele, uma mulher com personalidade tão fria quanto a casa em que
vive. Ela simplesmente ignora todas as iniciativas da cunhada para serem amigas
e de certa forma parece exercer algum poder controlador sobre Thomas, o que
leva Edith a acreditar que os irmãos possuem algum segredo em comum.
Não bastasse o incômodo clima
familiar, a recém-casada ainda terá que esquivar-se de estranhas situações.
Atormentada por aparições e mensagens de sua mãe que faleceu quando ela ainda
era uma criança, finalmente fazia sentido seus avisos para tomar cuidado com a
colina escarlate. A mansão dos Sharpe acaba se tornando um personagem crucial e
cada cômodo parece dotado de vida própria, ou melhor, carregam uma misteriosa
atmosfera. Ainda que fique latente a sensação de algum tipo de onipresença, não
se trata de uma mera casa assombrada e sim a morada de tristes lembranças que
afetarão diretamente a vida de Edith. Para acentuar a periculosidade do local,
os efeitos das minas de argila que de certa forma sustentam a propriedade fazem
parecer que a casa em si sangra. Apesar de ameaçadora, a mansão é de uma beleza
ímpar com ambientes de proporções gigantescas e ricos em detalhes estéticos,
mas embora em decadência del Toro evita mostrar sinais de sua deterioração,
sendo o mais evidente o fato do hall que dá acesso a escadaria principal estar
sempre coberto de neve, folhas ou até mesmo água por conta de fissuras no
telhado. A ruína do patrimônio e do nome dos Sharpe parece ser acompanhada pela
imagem da matriarca estampada em um imponente autorretrato. Os figurinos também
ajudam a frisar pontos da narrativa. Quando está investigando a fundo o passado
do marido, Edith surge com um esfuziante vestido amarelo, como se demarcasse
que devolveria luz ao cenário marcado pelas cores escuras. Por vezes Lucille
surge usando roupas ou adereços em tons avermelhados, referência óbvia não
apenas a sangue, mas também a paixão, o real sentimento que move esta história.
Fora a introdução, os primeiros minutos de fato poderiam muito bem ser
inspirados em alguma obra da romancista Jane Austen, que inclusive é citada no
filme em uma comparação a contragosto da protagonista. Wasikowska interpreta
uma mocinha bem ao gosto da escritora exalando vulnerabilidade, mas que
demonstra determinação quando se depara com a triste realidade de que seu
casamento não é um conto de fadas. Existe todo um cuidado para tornar nítido e
crível o fascínio que Thomas exerce sobre Edith a ponto de ela desistir de
viver um romance com o gentil e declaradamente apaixonado Alan McMicheal
(Charlie Hunnam), um jovem médico pouco aproveitado na trama, tendo sua
importância previsivelmente acionada no ato final. Já Hiddleston compõe um
mocinho dúbio, nos fazendo acreditar que ama a mocinha, mas ao mesmo tempo deixando
a sensação de que seu casamento foi unicamente por interesses financeiros.
Thomas poderia ser apenas um
personagem sedutor, mas cresce com o respaldo das ações de Lucille defendida
com determinação por Chastain. Embora sua atuação acabe por revelar o grande
segredo do filme precocemente, algo pontuado pelos esforços em preservar a
imagem de mulher irrepreensível e altiva, os diálogos afiados entre os irmãos e
a própria vilania caricatural desta mulher garantem o interesse na fita que
narrativamente fica aquém de seu apuro visual. O roteiro escrito pelo próprio
del Toro junto com Matthew Robbins, repetindo a parceria feita em Mutação, bebe abundantemente na cultura
gótica, mas no epicentro de tudo está um melodrama típico de telenovelas que
casa bem com o viés fantasmagórico do argumento, o velho gancho da alma
atormentada que precisa encerrar algum assunto mal resolvido no mundo dos vivos
para ficar em paz, mas ao final fica a sensação de que o texto poderia ir além.
Apesar de todas as possibilidades, a proposta não seria realmente uma obra de
grandes sustos, mas sim da construção de uma atmosfera incômoda e nisso a
produção é vitoriosa. Brincando com visões que podem ser puro delírio ou
verdadeiras manifestações sobrenaturais, para criar o visual dos fantasmas mais
uma vez del Toro recorreu as habilidades corporais e faciais do ator Doug
Jones, especialista em dar vida a personagens digitais ou construídos sob
pesados figurinos e maquiagens. E assim, mais uma vez, o cineasta mexicano
consegue apresentar uma obra acima da média com foco na originalidade, mesmo
sendo repleta de referências clássicas da literatura e do cinema. É fácil
identificar elementos tipicamente góticos e da cultura europeia, até mesmo
enquadramentos e movimentos de câmera característicos de cineastas mestres no
campo do horror. A Colina Escarlate por convenção
é catalogada como uma fita de terror, mas pende muito mais para o suspense,
principalmente por conta do ritmo lento adotado. Todavia, a trama que
inicialmente pode dispersar a atenção do espectador pouco a pouco faz o reverso
e consegue embriagar com sua atmosfera soturna. Ainda assim, sentimos falta de
uma exploração maior do contexto histórico em que a ação está inserida.
Juntando as peças, compreendemos que o pano de fundo se refere a um período de
declínio das potências europeias e emersão dos norte-americanos como líderes do
capitalismo, mas a liga com a trama fictícia sofre com algumas rachaduras. No
citado e premiado filme do Fauno, por exemplo, del Toro aliou perfeitamente seu
drama com toques de fábula às críticas a ditadura espanhola. Mesmo assim, eis
um filme com conteúdo e beleza que merece reavaliação por parte de muitos.
Terror - 118 min - 2015
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