NOTA 9,0 Longa faz um retrato crítico e histórico da realeza mostrando que por trás da ostentação um jogo de interesses ditava as regras |
A história do cinema é marcada
por obras que não só enchem os olhos do espectador por apresentar belas
imagens, mas algumas também podem dar água na boca e abrir o apetite, tanto é
que já existem até publicações e sites dedicados a divulgar os filmes em que as
comidas e as refeições não servem apenas como pano de fundo ou adorno, mas
assumem posições de coadjuvantes ou até podem se tornar protagonistas do
enredo. Com guloseimas e mesas fartas, algumas produções assumem o caráter gastronômico
e a direção de arte capricha para criar um visual delicioso e aconchegante. A
primeira vista, um cenário requintado é o que nos oferece Vatel - Um
Banquete Para o Rei, mas esta superprodução francesa, porém falada em
inglês, infelizmente raríssima de ser encontrada em mídia original ou vista na
TV, tem muito mais a nos oferecer do que simplesmente aguçar nosso paladar.
Baseando-se em fatos reais, o cineasta Roland Joffé, dos premiados Os Gritos do Silêncio e A Missão, construiu um filme que, apesar
de ser de época, traz pontos relevantes e contemporâneos, como a busca pela
excelência para obter aprovação e sucesso e temas como honra e caráter. Para
degustar este enredo por completo, é preciso provar do recheio e não se
contentar apenas com a cobertura. O roteiro de Tom Stoppard, adaptado da peça
teatral homônima de Jeanne Labrune, nos remete até o século 17, mais precisamente
em 1671 na França. O Príncipe de Condé (Julian Glover) está passando por
problemas financeiros e planeja uma solução para fazer com que toda a província
fique livre das dívidas. Ele decide convidar o rei Luís XIV (Julian Sands) e
toda a corte de Versailles para passar um final de semana festivo em seu
palácio repleto de entretenimento e saborosas iguarias culinárias e assim quem
sabe fazer com que o monarca perdoasse as suas dívidas e evitasse uma guerra
provocada por um desastre econômico, trazendo prosperidade a toda a região. Porém,
apenas um homem poderá preparar um banquete a altura e também cuidar da
diversão da comitiva real: François Vatel (Gérard Depardieu), o mordomo do
Príncipe, este que não poderia se endividar ainda mais por conta desta ideia
arriscada. Contudo, seu fiel escudeiro é de uma criatividade assombrosa para se
virar com os alimentos e sabe que uma produção cenográfica é essencial para
impressionar os convidados, ainda que para ele tais nobres lhe causassem
repulsa, mas em nome da estima que sente por Condé aceita o desafio.
Em meio às tramas políticas
encabeçadas pelo Marquês de Lauzun (Tim Roth) e a todo o trabalho para a
preparação de três jantares suntuosos, Vatel acaba se apaixonando pela bela
Anne de Montausier (Uma Thurman) que fica dividida entre a vontade de se manter
junto ao luxo da corte e o desejo de ser amada por um homem que nutre o mesmo
sentimento de romantismo que ela, mesmo ele não sendo um nobre e tampouco um
simples camponês, apenas mais um na multidão tentando se destacar com seu
trabalho. Esse relacionamento, porém, poderia acabar atrapalhando os planos de Condé
visto que o rei Luís também demonstra interesse na mesma dama, porém, com o
intuito de que ela seja sua amante. É justamente essa sensação de ser usado o
ponto que acaba unindo Anne e o cozinheiro. Essa história é até bem conhecida
em terras européias, mas só foi espalhada pelo mundo com o filme, ainda que ele
tenha ficado mais restrito aos cinéfilos de plantão. Com um rico roteiro em
mãos, o diretor Joffé conseguiu fazer uma grande produção a respeito da vida
palaciana e até certo ponto complexa do ponto de vista social. No mundo da
corte, todos precisam ter dinheiro para estar a altura do estilo de vida e da
fama propiciada. Quem não tem condições financeiras precisa entrar nas regras
do jogo para não ficar por baixo. Vatel conseguiu transitar entre estes dois mundos,
dos ricos e dos pobres, mas descobre que a realeza não é perfeita, que só era reconhecido
por causa de seu talento para a gastronomia e que sem perceber não era ele quem
orquestrava os grandiosos eventos, mas sim os festejos que o manipulavam como
um escravo. A sua maior qualidade também era seu maior defeito. Ele queria
cuidar de todos os detalhes que envolviam uma festa para que nada desse errado,
mas tal obsessão pelo perfeccionismo e para alimentar seu ego acabou sendo o
veneno que interrompeu sua vida. Tal percepção da sua real condição no
cotidiano palaciano é aguçada justamente pelo sentimento que passa a nutrir por
Anne, um amor que julgava não poder ser vivenciado em sua plenitude, e também
ao descobrir que o príncipe a quem tanto se dedicou por anos o apostou em uma
jogatina, explicitando que as relações humanas não significavam nada diante dos
interesses de poder. Depardieu consegue trabalhar muito bem a transformação
gradual pela qual seu personagem passa devido a sua conscientização a respeito
da injustiça social do mundo hierárquico até sua fase amargurada. Com várias
personalidades históricas em seu currículo, o ator tem seu próprio jeito de
atuar e nem todo mundo aprova os seus trejeitos característicos, mas nada que
atrapalhe a sua interpretação que deixa latente o isolamento do mundo de seu
personagem. Tudo para ele gira em torno de comidas e enfeites e nem amigos ele
tem, sendo que em seus diálogos limita-se a dar ordens aos subordinados ou
aceitar os pedidos de seus superiores de casta.
Festejado durante os anos 80, Joffé
na época deste lançamento já amargava uma fase ruim profissional com trabalhos
recebidos de forma fria por parte de crítica e público, mas é inegável que o
apuro visual de suas obras é coisa de mestre. Para fazer seu relato histórico e
crônico da nobreza do século 17, mais uma vez o diretor apostou em um
espetáculo grandioso para oferecer ao espectador como é de costume em sua
filmografia. Além de uma história muito interessante, o cineasta caprichou nos
detalhes da produção tal qual seu protagonista com seus banquetes. Trilha sonora, figurinos, fotografia e a já
mencionada deliciosa direção de arte com suas locações, adereços, iguarias,
cenários teatrais e até artifícios pirotécnicos e esculturas de gelos para
adornar a comilança. Tudo parece estrategicamente colocado no lugar certo e em
harmonia para criar imagens belíssimas como se fossem quadros da época. Até as
comidas foram pesquisadas e feitas com muita atenção para serem o mais fiéis
possível ao que poderia ser servido em um banquete na época. A tecnologia e
criatividade empregadas nas apresentações feitas para o entretenimento da corte
francesa são um deleite para os olhos dos espectadores e inovadoras para o
período em que a trama se passa. Sim, por incrível que pareça uma encenação de
ópera em meio a um jantar no qual os convidados estão ilhados entre piscinas
d’água e pequenos fogos de artifício estouram nas mesas não é loucura do
cineasta. Um grupo de historiadores prestou consultoria durante as filmagens
para que tudo ficasse verossímil e representasse a riqueza em seu nível máximo,
apesar de que para muitos o resultado final do visual possa beirar o exagero.
Porém, o período histórico permitia a grandiosidade e a criatividade e isso
ajudou a equipe de produção a soltar a imaginação, mas ainda assim mantendo o
espírito original da história que serviu de base. Em resumo, Vatel -
Um Banquete Para o Rei é o retrato da hipocrisia, da decadência de
um reino e a podridão de seu sistema de castas imposto pela hierarquia, mas com
cores fortes e um tempero especial para escamotear a acidez do enredo. Para
alguns apenas um deslumbrante desfile de imagens bonitas. Para outros, um
contundente trabalho a respeito de um período visto por outra ótica, a dos
acontecimentos na França, mas ainda assim não muito diferente do que se encontraria
em outros países. Uma pena este banquete cinematográfico ser uma raridade no
mercado para ser saboreado, mas vale a pena insistir na procura.
Drama - 117 min - 1999
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