domingo, 15 de agosto de 2021

A TARTARUGA VERMELHA


Nota 9 Coprodução com a França honra tradição de estúdio japonês para obras oníricas e emotivas


Tão importante quanto os estúdios Disney, o Studio Ghibli por décadas cultivou a imagem de sinônimo de magia, poesia e qualidade no campo das animações, ainda que a maioria de suas produções ficassem restritas a um público mais seleto. Desde que A Viagem de Chihiro conseguiu derrubar tal barreira, muito graças ao Oscar da categoria conquistado em 2003 que ajudou a fita a garimpar espaço para exibição em grande circuito, o público das futuras produções da empresa cresceu consideravelmente, assim como a procura pelo seu catálogo de títulos. O público então pôde assistir pela primeira vez ou rever verdadeiros tesouros da sétima arte, contudo, a própria companhia então já divulgava uma contagem regressiva para encerrar suas atividades. Felizmente voltaram atrás na decisão. Para driblar os altos custos do processo artesanal de confecção dos filmes e a aposentadoria de seus profissionais mais antigos, entre eles o cultuado Hayao Miyazaki, o jeito foi ampliar horizontes e se adaptar aos moldes da globalização, assim adotando o sistema de coproduções. Dirigido e idealizado pelo holandês Michael Dudok de Wit, A Tartaruga Vermelha é uma belíssima e emocionante produção que preserva boa parte do DNA do estúdio japonês, como a harmonia entre enredo rico em conteúdo e ao mesmo tempo poético e fabular e imagens que arrebatam com seus detalhes, apuro técnico e paleta de cores escolhida a dedo. 

Completamente sem diálogos (ouvimos apenas alguns gritos e interjeições ocasionais), o longa começa com o protagonista, cujo nome jamais é revelado, em apuros durante uma tempestade em alto-mar. Levado pelas ondas até uma remota ilha, ele tem a ideia de fazer uma jangada improvisada de bambu para retornar à civilização, mesmo que para isso demorem vários dias. Contudo, seu plano acaba sendo frustrado repetidas vezes por conta de uma imensa tartaruga vermelha que insiste em destruir a balsa. O animal estaria apenas seguindo seu instinto selvagem ou evitar a partida do náufrago teria alguma razão específica? Cansado dos ataques do réptil, em um momento de raiva o sujeito se vinga atacando e aparentemente provocando a morte do animal, todavia, assim que é ferido, ele misteriosamente se transforma em uma garota de longos cabelos avermelhados. O homem não vê com seus próprios olhos tal mutação, mas acredita nesta versão porque se arrependeu de seu ato cruel, mas quando voltou ao local encontrou apenas o casco do bicho do qual a jovem supostamente teria saído. 


Abandonando os característicos olhos grandes e buscando traços mais realistas aos personagens, esta primeira produção europeia do Ghibli não busca uma ruptura com o estilo predominante da empresa até então, pelo contrário, apenas soma o talento e a criatividade de duas potências do campo da animação, o Japão e a França, país onde Wit estabilizou seu próprio estúdio. Estreante como diretor de longas, embora já tivesse experiência como animador e participado da criação visual de Fantasia 2000, por exemplo, o cineasta demonstra compreender e ter domínio a respeito da união de trilha sonora, imagens e até mesmo dos momentos de silêncio para compor uma narrativa cujo conteúdo, mesmo quando livre de diálogos, pode ser apreciado universalmente. É nítido o cuidado do roteiro escrito por Wit em parceria com a francesa Pascale Ferran ao usar a trajetória individual de um homem para fazer um sentimental ensaio sobre a passagem de tempo, amadurecimento e, principalmente, a valorização de pequenas coisas ou momentos. Aliás, a dinâmica entre ser humano e natureza é muito importante nesta narrativa. O náufrago se alimenta apenas com o que encontra e consegue colher na ilha, mas usa esse benefício com parcimônia, tem consciência de que uma hora seu sustento pode acabar. Por outro lado, quando reage brutalmente contra a tartaruga mostra-se saturado de tantas privações, fora de seu juízo perfeito.

Sem se preocupar em explicar quem é o protagonista ou as origens da tal jovem que surge inesperadamente em sua vida, a narrativa simplesmente aceita os acontecimentos em prol de um objetivo maior: abordar a necessidade do ser humano em ter contato com outro, seja para vivenciar o sentimento do amor ou simplesmente ter com quem dividir problemas, anseios e alegrias. É da convivência que também acaba sendo determinada a percepção que temos a respeito da vida, do tempo e do mundo como um todo. No caso da trama, se a princípio o homem demonstrava verdadeiro desespero em deixar a ilha o mais rápido possível, bastou ter a companhia de alguém para apaziguar sua ânsia de voltar para casa e assim preencher o vazio que sentia. Como de praxe nas obras do estúdio, tudo tem um significado e não por acaso os longos cabelos da tal  jovem são vermelhos, a cor que simboliza o amor. Aliás, é impossível não prestar atenção em detalhes como as madeixas da moça oscilando com fluidez sob a água reagindo a correnteza ou aos deslocamentos provocados pelos movimentos naturais dela. O mesmo se pode dizer das cenas em que o náufrago vasculha a ilha, com a vegetação retratada com riqueza de cores, formas e o acréscimo dos efeitos sonoros. Seja o estalar de pisar no mato ou o nítido barulho das ondas do mar, se fechar os olhos é possível se sentir de fato em tal ambientação. 


Também vale destacar que, em contraste ao colorido presente durante os dias, as noites são retratadas em tons acinzentados, uma forma poética de mostrar que o protagonista tem seus momentos para refletir e avaliar a falta que lhe faz sua rotina junto a civilização. Contudo, sua vida agora é na ilha. Com a misteriosa jovem vem a realizar o desejo de formar uma família e juntos vão enfrentar as adversidades impostas pelo ambiente, situações que os ajudarão a criar laços cada vez mais sólidos. Todavia, as dúvidas quanto deixar ou permanecer na ilha nunca os abandonará visto que no futuro tal decisão também será uma dúvida constante do filho. Por seu estilo narrativo e trama, é certo que A Tartaruga Vermelha  é até então a produção do Ghibli menos chamativa e até mesmo indicada para crianças, mas que ainda assim honra a tradição do estúdio em trabalhar o onírico aliado a certa crítica social ou reflexão. Como já dito, todos precisam de uma companhia e, no caso, não importa a origem do náufrago ou a natureza mágica de sua esposa. O que importa são os sentimentos que os une e gerou fruto, embora em uma sociedade convencional certamente tal família seria apontada como excêntrica. Talvez o isolamento seja a melhor escolha.

Animação - 80 min - 2016

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