sexta-feira, 24 de setembro de 2021

A BRUXA


Nota 9 Trama de horror psicológico em que a fé e ignorância são os vilões foge da obviedade


Basicamente histórias de horror são construídas tendo como base o bem contra o mal ou, seguindo tradições cristãs, resumem-se a batalha sem fim de Deus contra o Diabo. Dependendo das crenças de cada espectador uma mesma obra do tipo pode ter um amplo leque de interpretações, principalmente quando a violência gráfica não está no enfoque. Seguindo uma proposta razoavelmente incomum, a ideia do suspense A Bruxa tem como ponto de partida a dúvida sobre a existência daquilo que seus personagens acreditam. A introdução apresenta uma família, com todos os membros de costas para a câmera, ouvindo sua sentença em um tribunal que os acusa de heresia. O pai, a mãe e seus cinco filhos são expulsos da comunidade em que vivem. Estamos em meados do século 17 na Nova Inglaterra, época e local em que qualquer desvio do padrão religioso imposto é interpretado como uma grave ameaça para manter a sociedade no caminho considerado correto. Assim o título ganha duas conotações iniciais. O clã sentenciado poderia de fato adorar a figura concreta de uma feiticeira bem como encaixa-se uma metáfora a respeito da expressão caça às bruxas, como ficaram conhecidas as perseguições às pessoas que tinham comportamentos e ideais contraditórios ao que era imposto por regimes políticos e religiosos na Europa durante a Idade Média. 

Não fica claro qual o credo praticado pelos acusados e repudiado para sentenciá-los, mas é a partir do afastamento do tal núcleo familiar que eventos assustadores são desencadeados. Detalhe, não envolvendo a comunidade, mas sim os próprios membros da família que ironicamente partiram reafirmando que dificilmente existiriam outras pessoas tão apegadas a fé como eles. Os puritanos William (Ralph Ineson) e Katherine (Kate Dickie) mudam-se para uma região inóspita e isolada do interior, próximo a uma floresta, e não tardam a sentir e presenciar sinais de que uma força estranha paira por lá. Os problemas começam quando, além do fracasso das colheitas das plantações que garantiriam o próprio sustento do clã e a rebeldia repentina doas animais que criam, a filha mais velha Thomasin (Anya Taylor-Joy) perde o irmão mais novo, um bebê de colo, de forma inexplicável. Foi só um segundo de distração e parece que alguma criatura maligna cruzou seu caminho. Logo os gêmeos Mercy (Ellie Grainger) e Jonas (Lucas Dawson) também vivenciam estranhas situações assim como Caleb (Harvey Scrimshaw), o filho do meio que se enche de coragem para ajudar os pais neste momento em que a fé de todos é colocada em xeque.


Abrindo mão de reviravoltas ou violência exagerada, mas exaltando o realismo, o diretor e roteirista estreante Robert Eggers trabalha a ideia de que uma força estranha habita a mata cerrada e vigia o cotidiano da família aproveitando de seus momentos de distrações. A qualquer momento algo inesperado pode acontecer e os personagens permanecem imersos em uma tensão crescente com o equilíbrio psicológico de todos abalado a ponto da adolescente Thomasin ser hostilizada pelos próprios parentes que suspeitam que ela esteja metida com bruxaria, ainda que seu pai defenda a ideia de que um lobo capturou seu filho. Todo o enredo gira em torno da personagem defendida por Taylor-Joy que consegue manter um jeito meigo e delicado mesmo sendo uma vítima do medo. Apontada como negligente após o sumiço do bebê, ela passa a estranhar o comportamento dos irmãos, principalmente dos gêmeos que, embora acreditem que ela tenha ligações com o demônio, são eles que conversam com um bode preto, animal cuja imagem é intrinsicamente vinculada ao universo satânico. Para complicar a situação, a jovem está na idade de transformações físicas e do despertar sexual, elementos muito exaltados em fitas de horror, assim causa certo desconforto entre os homens da família e estimula indiretamente uma rixa com a própria mãe pelo simples fato de estar cumprindo o ciclo da vida permitindo-se amadurecer. Ela representaria no cunho religioso a tentação que leva os homens a se desvirtuarem e mulheres a enlouquecerem por conta da inveja despertada. 

Ainda que pareça a pessoa mais sensata de sua casa, Thomasin carece de certa concepção intelectual e principalmente emocional, assim como seus demais parentes, para compreender que está havendo um desgaste gradual e natural dos laços afetivos, mas a moral cristã exagerada os forçam a encontrar um culpado para justificar a espiral de infortúnios. No fundo acreditam que forças malignas da floresta estão agindo sobre eles, porém, dentro da educação que os regem, é mais cômodo viver com a certeza de que tudo que é negativo é uma punição por algum pecado cometido, logo carregam tal sentimento desde o nascimento já que são frutos da luxúria. E nesse ambiente incômodo, registrado com uma paleta de cores cinzenta acentuando a precariedade da época, mais especificamente da triste vida que levavam pessoas à margem da sociedade, os recursos sonoros são exaltados. O ruído dos ventos, o piar dos pássaros, o estalar de um graveto, tudo que quebra o silêncio ganha um tom ameaçador. O diretor assume que sua maior fonte de inspiração vem de O Iluminado. O próprio Stephen King, autor do livro que originou o sucesso estrelado por Jack Nicholson, revelou publicamente que se tornou fã de Eggers instantaneamente, certamente por perceber referências a seu trabalho pela abordagem do isolamento e suas ações negativas sobre o psicológico. Contudo, as semelhanças param por aí e A Bruxa se cerca de méritos próprios para conquistar elogios. 


O longa aposta exclusivamente em extrair medo de coisas provincianas. Se uma floresta fechada por si só já causa calafrios, a tensão aumenta tendo uma casa isolada como cenário principal e até a presença de bichos comuns pode se tornar uma ameaça quando estamos propensos a sensações negativas. Eggers oferece ao espectador a oportunidade de imaginar o terror ao invés de vivenciá-lo, assim tornam-se essenciais os cuidados com a fotografia, iluminação e direção de arte. O uso de velas e fontes de luz naturais, por exemplo, acentuam os efeitos de solidão e insegurança e aliados aos figurinos e objetos cênicos fazem com que cada frame nos remeta a pinturas renascentistas, estilo de arte contemporâneo à ação da trama. Contudo, o cineasta toma cuidado para que seu apuro técnico não se estabeleça como grande trunfo de sua obra. Com diálogos em inglês arcaico, é certo que a produção pode decepcionar muita gente, mas sabendo de antemão que não se trata de um horror convencional a expectativa ou reação é no mínimo de curiosidade. Além do chamativo aspecto visual, a construção do clima de tensão e da psicologia dos personagens revelam a obsessão do diretor em realizar um trabalho que ultrapasse os limites do entretenimento, colocando o espectador a refletir sobre o poder de uma crença, os problemas gerados pela ignorância e o sentido de família. A derradeira cena, com um quê de déja vu hollywoodiano, infelizmente quebra um pouco a atmosfera acachapante conquistada, mas é um defeito mínimo em tão belo conjunto.

Suspense - 93 min - 2015

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