terça-feira, 3 de fevereiro de 2015

BALZAC E A COSTUREIRINHA CHINESA

NOTA 8,0

Drama retrata o difícil
período que a China viveu
com governo reacionário e
veto à elementos culturais
Quem nunca ouviu falar que a cultura pode mudar um ser humano e a longo prazo quiçá o mundo? O cinema e a literatura obviamente são dois caminhos prazerosos para isso, mas o efeito positivo da junção dessas duas manifestações artísticas pode ser ainda mais avassalador como nos prova Balzac e a Costureirinha Chinesa, um belo drama com pano de fundo histórico dirigido por Dai Sijie, um chinês radicado na França. O longa é baseado no livro homônimo do próprio cineasta, uma autobiografia retratando o final de sua adolescência quando passou por um processo de reeducação em um povoado escondido entre as montanhas. Saber criticar, opinar e ter uma ampla cultura sempre representou empecilhos aos regimes totalitários e não por acaso foram duramente reprimidos durante a maioria deles, períodos marcados pela ênfase no desenvolvimento da disciplina e tarefas que exigiam máximo esforço físico. Partindo do mesmo princípio, Hitler comandou a Alemanha dessa maneira, por exemplo, e até o Brasil viveu uma realidade parecida nos tempos da Ditadura Militar. No filme acompanhamos alguns jovens que driblam as adversidades para enriquecerem suas mentes e assim consequentemente tornando-se ameaças às regras governamentais da China comandada por Mao Tsé-Tung. Nos anos 70, Luo (Chen Kun) e Ma (Liu Ye) são dois rapazes que passam a ser apontados como inimigos do povo pelo fato de seus pais serem médicos e considerados burgueses reacionários. Estes adolescentes são presos e encaminhados a um campo de reeducação em uma vila isolada no Tibet. Mesmo sem preparo físico, eles são obrigados a realizar tarefas pesadas como camponeses e mineradores, uma forma de aprenderem o que realmente é importante nesta vida segundo ditava o governo, ou seja, o trabalho forçado e a obediência a uma hierarquia firmemente estabelecida. No campo eles apenas encontram alívio nas músicas tocadas por Ma e nas histórias narradas por Luo, embora livros e instrumentos musicais fossem proibidos e confiscados sempre que encontrados. Através da cultura, esses amigos acreditam que a mentalidade da ignorante comunidade da qual fazem parte pode ser mudada. A vida miserável de ambos ganha um sopro de esperança quando conhecem a neta do alfaiate local, uma garota conhecida simplesmente como costureirinha (Zhou Xun) por quem os dois se apaixonam, cada um a sua maneira. Ela então lhes revela um precioso tesouro: livros considerados subversivos e de autoria de pensadores como Flaubert, Tolstói, Victor Hugo e Balzac, que estão de posse de Quatro Olhos (Wang Hongwei), outro jovem que também está sendo reeducado e está prestes a retornar à cidade. O trio então decide por roubá-los para promoverem suas próprias revoluções pessoais, assim almejando a liberdade de pensamento e a tão sonhada ruptura do autoritarismo.

Mao Tse Tung governou a China do final dos anos 60 a meados da década seguinte com ideias reacionárias. Após os desastrosos resultados de uma campanha denominada “O Grande Salto para Frente”, que acabou desencadeando uma das piores ondas de fome da História mundial, Mao e sua equipe de governo decidiram atribuir a culpa às influências do capitalismo sobre a China, assim enxergavam nas artes e na cultura ocidental a principal porta de entrada de tais pensamentos proibidos. Dessa forma, os intelectuais imediatamente passaram a ser vistos como inimigos do povo chinês. No intuito de promover uma onda de reeducação socialista, o ditador empreendeu no final de 1968 a Revolução Cultural, uma espécie de lavagem cerebral desumana e coletiva. Ser uma pessoa com censo crítico e culta era muito inconveniente para os regimes totalitários que queriam comandar a população, portanto a ignorância do povo era tudo o que precisavam e um trabalho incessante semelhante ao dos tempos da escravidão era a maneira mais eficaz de se conseguir isso.  Corpo cansado e tempo ocupado eram os lemas. Quem era contra o governo acabava se manifestando através das artes e da cultura, correndo o risco de sofrer terríveis consequências, inclusive pelo fato do regime político conseguir jogar a população manipulada contra os intelectuais, um conflito ente a maioria versus um pequeno grupo de indivíduos que precisavam ser ouvidos. No território chinês a tal revolução que Mao impôs levou ao fechamento das universidades e os jovens eram enviados ao campo para aprenderem os valores que o governo julgava corretos para a construção de uma nação direita. Estes regimes totalitários e as guerras contra as influências culturais já foram explorados pelo cinema de vários países, cada qual apresentando a sua maneira os efeitos desastrosos desse empobrecimento intelectual. Sijie apresenta aqui a sua versão sobre o período reacionário chinês, apresentando sua visão com muita intimidade e detalhes afinal, como já dito, ele próprio viveu e sofreu as consequências. A cena que inicia o longa, por exemplo, pode parecer simplória e até engraçada, mas para um jovem sentindo na pele as pressões do governo ela com certeza é marcante. Reunidos em uma aldeia, os camponeses estão alvoroçados para saber o que é um misterioso objeto que um dos protagonistas trouxe na bagagem. Simplesmente é um violino, um objeto comum para os habitantes da cidade, mas completamente estranho ao povo do campo. Aliás, tal instrumento só não foi confiscado porque Ma convenceu a todos que Mozart compunha em homenagem a Mao.

No filme roteirizado pelo próprio cineasta em parceria com Nadine Perront o processo de superação dos três protagonistas acaba por se refletir na vida daquelas pessoas humildes da aldeia em que vivem, um povo que propagava ideais revolucionários sem mesmo saber o que eles significam. Esses personagens "mais evoluídos" querem descobrir o que o mundo tem a oferecer, mas precisam fazer tudo as escondidas para não sofrerem ainda mais repressão. Nessa espécie de campo de refugiados onde as pessoas são obrigadas a fazerem serviços pesados para ocupar o tempo e a mente, os jovens protagonistas conseguem entrar em contato com a cultura mundial graças aos livros que roubam e trazem as escondidas para a aldeia. Apesar deste furto, os conhecimentos que o trio adquire através destas publicações acabam sendo repassados pouco a pouco aos demais habitantes do local, como fica provado na cena em que as aldeãs chinesas aparecem vestidas como francesas à beira-mar, uma ruptura e tanto aos padrões do regime totalitário. O grande intuito de Balzac e a Costureirinha Chinesa é fazer uma verdadeira homenagem a literatura, servindo como um incentivo ao hábito da leitura mostrando o quanto ela é importante para o crescimento de um indivíduo em vários aspectos. De quebra ainda temos um contundente e necessário registro sobre um período histórico vivido por um país cujo passado e cultura não são totalmente conhecidos universalmente. Geralmente os filmes de drama orientais causam impacto pelas espetaculares imagens que mostram belíssimas paisagens, figurinos e cenários, mas aliados a um excelente roteiro podem se transformar em obras de importância ímpares. Com fotografia e locações de encher os olhos, esta produção é um belíssimo exemplar de amor e contemplação as artes, porém, mais uma vez a lei do mercado faz valer a sua força. Se não há demanda não há oferta e vice-versa. Por desinteresse do público ou pouco caso das distribuidoras este é mais um excelente filme esquecido e fora do mercado. Ou será que ainda nos dias atuais sofremos com ameaças a liberdade cultural? 

Drama - 116 min - 2001 

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