quarta-feira, 22 de junho de 2016

O CORTE

NOTA 9,0

Drama sobre desempregado a
beira do desespero envolve o
espectador com toques de humor
e temática universal e atemporal
Uma das reclamações mais frequentes dos brasileiros é quanto ao desemprego, um problema que já dura várias décadas, e isso fez com que boa parte da população depositasse suas esperanças no tal sonho americano, a doce ilusão de que a vida nos EUA seria mais fácil e com emprego garantido. Boa parte dos sonhadores se decepcionou quando comprovou que o mercado de trabalho americano é tão acirrado quanto o brasileiro e então voltaram seus olhares para outros países, principalmente os europeus, mas a situação não difere muito como mostra o longa francês O Corte, drama com pitadas de humor negro dirigida pelo grego Costa-Gavras. O cultuado cineasta não tem medo de criar polêmicas e cutucar problemas de alcance universal, assim suas obras conseguem dialogar perfeitamente com os mais diferentes públicos, independente do país que escolha para ser o cenário de suas tramas. Entre tantos filmes que assinou, ela já tratou de política em Desaparecido, criticou o trabalho da imprensa manipuladora em O Quarto Poder, falou sobre a omissão da Igreja quanto ao Holocausto em Amém e no trabalho em questão escolheu falar sobre o mundo capitalista através da ótica de um desempregado. Bruno Davert (José Garcia) é um competente engenheiro da indústria de papéis que trabalhou em uma mesma empresa durante 15 anos, mas nem toda sua experiência e dedicação foram suficientes para livrá-lo da lista de cortes quando a fábrica precisou passar por uma reestruturação para manter-se em atividade. Com um currículo invejável ele leva numa boa a demissão, pois acredita que não terá problemas para conseguir um novo emprego, no entanto as coisas são muito difíceis e quando se dá conta já está a mais de dois anos em casa esperando algum telefonema, email ou correspondência a respeito de alguma entrevista de trabalho. Além da vergonha de não ter uma ocupação e se tornar extremamente anti-social, pesa o fato dele e dos filhos Maxime (Geordy Monfils) e Betty (Christa Theret) estarem sendo sustentados por sua esposa Marlène (Karin Viard) que se divide entre dois empregos. A situação chega a um nível desesperador quando ele assiste a um DVD promocional de uma empresa de papel concorrente a qual trabalhava e sente uma raiva incontrolável de Raymond Machefer (Olivier Gourmet), engenheiro porta-voz da companhia que faz exatamente o serviço que Davert era especialista, ou seja, em sua mente perturbada pelo ócio do desemprego esse homem estaria ocupando uma vaga que julgava ser por direito sua.

Davert então começa a ficar obcecado pela ideia de que a única forma de conseguir um emprego é focando sua atenção em seus concorrentes potenciais e bola um plano para descobrir quem eles são. Ele anuncia uma vaga fictícia e tentadora de emprego em uma agência de talentos, rapidamente muitos se candidatam e o desempregado consegue ter acesso ao currículo detalhado de todos eles, incluindo fotos nas quais os profissionais procuram demonstrar credibilidade através da imagem que passam, quesito em que Davert sentia-se em desvantagem além da falta de intimidade com novas tecnologias que também seria um empecilho. Após analisar toda a papelada, ele chega a conclusão de que a maioria dos candidatos são ignorantes e presunçosos e apenas cinco deles possuíam currículos comparáveis ao seu. Graças a um inocente comentário do filho adolescente, o engenheiro então tem uma ideia um tanto bizarra: literalmente matar a concorrência. O longa na realidade segue até a metade na base do flashback. A introdução mostra o protagonista chegando atarantado em um quarto de hotel numa noite chuvosa e disposto a confessar seus atos criminosos usando um gravador particular. Na ocasião ele acabara de fazer sua terceira vítima e constatava que seu plano era mais difícil de por em prática do que imaginava, mas já que começou era preciso acabar.  Henri Brich (Marc Legein), Edouard Rick (Phillippe Bardy) e Etienne Barnet (Yvon Back) foram os primeiros eliminados, mas ainda faltava dar um sumiço em Rolf Krantz (Michel Carcan) e em Gérard Hutchinson (Ulrich Tukur), além do próprio Machefer que embora estivesse trabalhando poderia estar procurando mudar de empresa ou se precavendo caso fosse uma nova vítima dos cortes empresariais. Drama, comédia ou suspense? Em qual gênero essa obra se encaixa? É até difícil escolher um já que a premissa atende bem as expectativas de todos eles. É fato que compreendemos o drama do protagonista e no final das contas até nos divertimos com suas peripécias para conseguir acabar com seus concorrentes. Com sutis trapalhadas, expressões faciais marcantes e deparando-se com situações que não previa, Davert dificilmente é visto como um assassino, pelo contrário, é muito fácil a identificação do público com o personagem. Ele não é uma pessoa má, somente busca seu lugar ao sol por meios torpes utilizando-se da máxima que diz que o mundo é dos espertos. É cruel pensarmos que uma pessoa pode tirar a vida da outra por puro egoísmo e para manter um padrão de vida elevado como é o caso. Se pararmos para pensar rigorosamente sobre o assunto é óbvio que o longa se revelará uma obra amoral. O jeito é ver tudo como uma grande brincadeira com fundinho de verdade. Brincando com clichês do cinemão americano, como o noticiário da TV que sempre aborda os assassinatos justamente no momento em que os personagens principais estão reunidos trazendo a tona comentários que deixam Davert com os nervos a flor da pele ou ainda quando a autoria de seus crimes são abafadas no último segundo graças a algum fato inesperado, Gavras é irônico do início ao fim, talvez usando seu protagonista como alter ego. Entre tantos pensamentos condenáveis ou fofoqueiros a respeito de suas vítimas, é inegável que ele também dispara frases geniais e que de certa forma extravasam aquilo que muitos dos espectadores podem sentir em relação ao mundo capitalista.

Baseado no romance de Donald E. Westlake, o enredo desenvolvido pelo próprio diretor em pareceria com o roteirista Jean-Claude Grumberg leva a extremos um dos conceitos do capitalismo: para demarcar território é preciso eliminar a concorrência. Apesar de mostrar personagens que vivem em belas casas, possuem bom nível intelectual e o fundo do poço deles não chegue aos pés da realidade de muitas famílias latino-americanas, por exemplo, é fato que a temática do longa é universal e o contraste visual é apenas um detalhe que não desmerece a obra, tampouco a deixa menos atrativa a nós brasileiros cujo conceito de pobreza é bem mais dramático. Exemplos de pessoas outrora da elite que passaram a sobreviver aplicando pequenos golpes, não chegando ao ápice de matar, não faltam em nosso país. Vale tudo para manter o “status quo”. Uma boa sacada do filme é mostrar alguns contrapontos. Enquanto o protagonista não aceita a ideia de que é preciso encarar a realidade e talvez procurar trabalhos muito aquém de suas reais qualificações, duas de suas vítimas desceram do salto e foram batalhar pelos seus sustentos em empregos populares como atendente de restaurante ou de loja de roupas, mas ainda assim acreditando que um dia poderiam voltar a ocupar um bom cargo em uma grande empresa. Intercalando as incursões criminosas de Davert, a narrativa ainda procura prender a atenção explorando o núcleo familiar do protagonista. A família não sabe do plano dos assassinatos, mas está claramente abalada com a mudança de comportamento do patriarca. Marlène começa a desconfiar dos constantes compromissos do marido (desculpas para espionar as vítimas e estudar a melhor forma de executá-las) e resolve partir para a terapia de casal com o Dr. Quinlan Logus (Dieudonné Kabongo), um psicanalista negro que entra na história propositalmente para falar sobre preconceitos enrustidos, algo desnecessário. O filho adolescente do casal, por rebeldia ou munido de boas intenções, se mete com roubos de programas de computador e a entrada da polícia na casa do engenheiro nesse momento seria algo impensável. O Inspetor Kesler (Thierry Hancisse) já havia conversando anteriormente com o Sr. Davert para especular sobra as misteriosas mortes que estavam acontecendo com homens com perfis profissionais semelhantes ao seu, mas deixa no ar se estava desconfiando dele ou apenas preocupado com sua segurança. No fundo, a temática de O Corte além de universal é também atemporal. Ainda hoje e provavelmente por muitos anos, quiçá a eternidade, sua mensagem estará sempre viva. A modernidade que está intimamente ligada ao avanço capitalista cada vez mais corrompe os seres humanos a ponto de perderem a razão e praticamente se comportarem como animais para sobreviverem. Trocando em miúdos, para alcançar seus objetivos, o homem não mede mais esforços e seguindo leis primitivas sobrevive o mais forte ou no caso aquele que é mais esperto, os demais precisam ser excluídos, as mesmas regras que ditam quem fica e quem sai do mercado de trabalho. Livre de maniqueísmos, esta obra tem uma temática complexa que pode ser mal compreendida por muitos e mesmo entre aqueles que entenderem o conteúdo pode ficar um sabor amargo ao final. A falta de ética que pode incomodar também acaba sendo o grande trunfo da produção, afinal o mundo já mandou as convenções às favas e faltava alguém com coragem para retratar tal realidade no cinema. 

Drama - 122 min - 2005

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