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NOTA 8,5 Por conta de uma tragédia casal se isola em busca de equilíbrio, mas retiro na natureza acaba levando-os a caminhos tortuosos e de loucura |
Conhecido por seu jeito polêmico
de ser e suas obras de temas difíceis, excêntricos e reflexíveis, o cineasta
Lars von Trier com seu Anticristo foi
além da proposta de chocar o público. Mais do que um verdadeiro soco no
estômago, com este trabalho o dinamarquês estava mais preocupado em extravasar
seus próprios demônios. Há dois anos ele sofria de uma profunda depressão que o
impedia de trabalhar e este longa não seria apenas um teste quanto sua
capacidade voltar a dirigir e escrever, mas também uma espécie de exercício
terapêutico no qual poderia reavaliar antigas ideias e pesadelos que o
atormentavam há décadas. Só para se ter uma ideia da vida nada convencional do
diretor tome-se como exemplo o fato de ter como um de seus livros prediletos
desde a adolescência “O Anticristo”, manifesto contra o cristianismo defendido
pelo filósofo Friedrich Nietzsche. Apesar da coincidência de títulos, Trier não
fez uma adaptação da obra literária. A partir de uma trama original, ele faz
seu próprio estudo sobre como o ser humano pode se comportar quando sob pressão
do sentimento de culpa. Natureza, religião, sexualidade e tolerância são
abordados pelo roteiro dividido em três capítulos, mais um prólogo e um
epílogo. Apenas um casal conduz toda a narrativa, ambos sem nomes cumprindo a
função de representar visões distintas que homem e mulher podem ter sobre um
mesmo fato. Defendidos com total desprendimento dos atores Willem Dafoe e
Charlotte Gainsbourg em atuações que ao mesmo tempo comovem e revoltam, seus
personagens, ele terapeuta e ela uma escritora, simbolizam respectivamente a
razão versus a loucura emocional, um dos vários antagonismos trabalhados pelo
enredo. A introdução já deixa claro que um filme atípico está prestes a
começar. Com cenas em preto-e-branco ao som de música erudita, o diretor
apresenta explicitamente um ato sexual, mas com uma beleza visual ímpar que
contrasta com a perturbadora ação que acontece paralelamente. Enquanto os protagonistas
transam durante o banho, com direito a generosos closes de penetração, o
pequeno filho deles, com carinha de anjo e na companhia de um ursinho de
pelúcia, consegue sair do berço e seguir em direção à janela do quarto que
estava aberta, assim caindo do alto do apartamento onde até então aparentemente
vivia uma família feliz. Em menos de cinco minutos Von Trier consegue apunhalar
o espectador severamente, mas isso é só um amargo aperitivo.
Sentindo-se culpados pela
tragédia, o casal decide refugiar-se em uma cabana encrustada na floresta, um
lugar tranquilo e isolado onde poderiam reestabelecer o equilíbrio emocional.
Sempre buscando simbolismos, o diretor batiza tal cenário como Éden que,
segundo a Bíblia, seria a habitação primitiva dos seres humanos, mais
precisamente o paraíso em que Adão e Eva teriam habitado e cometido o pecado de
comer o fruto proibido. Os protagonistas também cometeram um pecado, o da
luxúria, e foram severamente punidos, seria essa a analogia desejada por Trier,
além da brincadeira que seu Éden é bem mais próximo do que poderia ser o
inferno. Afastados da civilização, os personagens sofrem uma espécie de
regressão conforme entram em contato com seus sentimentos mais instintivos,
principalmente aqueles ligados ao medo. O dia-a-dia do casal transforma-se em
um completo caos quando se deixam dominar pelo poder da culpa. Mesmo sofrendo
profundamente, o marido aproveita seus conhecimentos terapêuticos e inicia um
tratamento para ajudar a esposa a superar suas fobias, a maioria delas ligadas
a natureza, como o simples ato de caminhar sobre um gramado. O próprio ambiente
parece incitar propositalmente estranhas sensações ao casal, como a imagem de
uma gazela que surge com seu filhote morto dentro de seu ventre pouco antes de
dar à luz. Os animais, em geral, já nascem preparados para abandonar suas crias
tão logo possam, mas os seres humanos não. Com sensação de culpa acentuada, a
mãe transtornada passa a culpar o marido por diversos fatos e o agride
fisicamente de forma feroz, assim como faz consigo mesmo, sempre tomada por uma
tensão sexual que a leva cometer atos masoquistas e de crueldade extrema. Dafoe
encarna seu personagem de forma mais contida, porém, bastante autêntica. Em
meio ao caos a figura masculina se atém a racionalidade procurando recuperar a
sanidade de sua companheira, mas mesmo assim não escapa de ter seus momentos de
loucura, desconfia até mesmo que pode se comunicar com animais. Todavia, o
longa se sustenta pela interpretação surreal de Gainsburg que rouba todas as
cenas com sua entrega total ao trabalho. Angústia, libido, egoísmo, loucura e
melancolia se fundem em sua interpretação. A atriz é exposta a situações
limites, uma característica da filmografia de Trier que usa e abusa da
misoginia, o ódio contra as mulheres.
Embora também se machuque física
e emocionalmente, a personagem feminina aqui é apontada como a raiz de todo o
mal do mundo. Quando automutila parte de sua genitália ou esmaga sem dó o pênis
do marido, por exemplo, a moça parece dominada por alguma entidade demoníaca.
Sim, cenas deste nível de violência compõem o longa que chocou a plateia do
Festival de Cannes e assim ganhou certa publicidade extra, como se o peso do
nome do diretor já não fosse uma propaganda e tanto. Classificar Anticristo em um gênero específico não é
fácil. A dramaticidade da obra é bastante explícita, mas o flerte com o horror
também se destaca, obviamente em cenas pouco convencionais. O erotismo também
se faz presente em momentos pontuais, mas sempre amparado por um clima tenso. Impactante,
forte, melancólico, grosseiro, sem noção... São muitas as reações e opiniões
que o trabalho de Trier pode provocar, positivas ou negativas, mas ficar
indiferente a seu trabalho é impossível. Provocadora é a melhor definição para
esta sua obra, ou melhor, para sua filmografia. O diretor tem um talento ímpar
para convidar seu espectador a se envolver com bizarras narrativas e aqui,
conforme avançam os capítulos, gradativamente somos atraídos para um universo
nebuloso e em meio a cenas asquerosas e ensandecidas guiados até um ato final
apoteótico que permite mais de uma interpretação, algo a ver com redenção ou
queda. Seja lá como for, é fato que o espectador estará inquieto ao término. O
próprio cineasta afirmou que não sentiu prazer algum durante as filmagens e que
o roteiro era desenvolvido conforme as filmagens avançavam, o que reforça que
este trabalho tinha como principal objetivo ajudá-lo a lidar com pesadelos e
questões emocionais mal resolvidas. Todavia, quanto a aspectos técnicos, a produção
não deixa transparecer que foi conduzida sem planejamento prévio. A fotografia
bastante sombria ressalta a direção de arte que apresenta a natureza como uma
força a se temer, algo que fica ainda mais nítido com os efeitos sonoros
ressaltados pela total ausência de trilha sonora. A melodia erudita que abre o
filme também o encerra e só. Assim, o estalar de um galho ou o som do vento nas
árvores pode soar como algo de arrepiar. Com câmera trêmula representando o
estado de espírito trepidante dos protagonistas, Trier resgata alguns conceitos
do manifesto “Dogma 95” que ajudou a implementar. A busca por um cinema mais cru
e experimental tem aqui um de seus melhores representantes sem dúvidas.
Drama - 100 min - 2009
Um comentário:
O Anticristo é filme cabeça e para corações e estômagos fortes, na primeira vez que você assiste não se dá a dimensão da importância desse belo roteiro...por isso não tenha pré-conceito, re-assista e verá que toda loucura que o personagem feminino sofre tem um grande sentido. Somente as cenas do prólogo já valeriam ver o filme, é 10!
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