terça-feira, 12 de julho de 2022

CHEGADAS E PARTIDAS


Nota 4 Apesar do ótimo elenco e qualidades técnicas, obra é tão fria quanto a paisagem que retrata


O nome do diretor Lasse Hallström, de Regras da Vida e Chocolate, é o que basta para se ter uma assinatura de sinônimo de qualidade. Realmente este sueco realiza produções geralmente acima da média que aliam narrativas tocantes a detalhes técnicos perfeitos, assim suas obras costumam ser entregues ao público em embalagem de luxo, mas nem sempre a fórmula funciona como prova Chegadas e Partidas que nem mesmo caiu no gosto da crítica especializada. Baseado no romance "The Shipping News", escrito por E. Annie Proulx e vencedor do prêmio Pulitzer em 1993, a narrativa gira em torno de Quoyle (Kevin Spacey), um nova-iorquino infeliz e melancólico que se acostumou com seu cotidiano sem graça. Ele vive com o dinheiro que consegue em empregos esporádicos e seu tempo livre é ocupado por lembranças desagradáveis de sua infância. Abandonado pela mãe e sofrendo maus tratos do pai, ele desenvolveu uma espécie de demência ou fobia que o impedem de almejar a própria felicidade. 

Sem objetivos a alcançar, Quoyle simplesmente deixa que a força dos acontecimentos guie seus passos. Sua vida melhora levemente quando conhece por acaso Petal (Cate Blanchett), uma vigarista sedutora que percebendo a personalidade maleável deste homem logo tratou de tirar algum proveito. Como ele ainda não havia experimentado o amor, facilmente caiu na ilusão de que poderia ser feliz ao lado de alguém que lhe dedicou alguns poucos minutos de atenção e lhe proporcionou uma noite inesquecível.  Eles se casam, logo ela engravida, mas a convivência nunca foi das melhores sendo que a esposa procurava diversão com outros homens sem fazer muita questão de esconder sua infidelidade. Quoyle, sempre submisso, talvez se sentisse na obrigação de aturar as afrontas, seja pelo medo de demonstrar alguma atitude ou até mesmo por consideração, afinal de contas foi graças a Petal que ele tem o maior tesouro de sua vida, a filha Bunny (papel revezado pelas trigêmeas Alyssa, Kaitlyn e Lauren Gainer). Se tornar pai o ajudou a compreender melhor a si mesmo. embora ainda acreditasse que era invisível para a maioria, mas ter alguém que dependia de seu sustento e que lhe amava com todos os seus defeitos o forçou, por exemplo, a se fixar em um emprego assumindo a tipografia como sua profissão. Porém, como diz o ditado, alegria de pobre dura pouco. 


Quando Bunny tinha em torno de uns seis anos, Quoyle sofre três baques seguidos que o fazem repensar o sentido de sua vida. Seus pais se suicidam, Petal sofre um acidente de carro no qual falece e ainda recebe a noticia de que a esposa adúltera estava prestes a vender a própria filha. Ao saber desses tristes acontecimentos, Agnis Hamm (Judi Dench) vai visitar o sobrinho e o convence a se mudar com a filha para Newfoundland, também conhecida como Terra Nova, uma pacata cidade pesqueira na costa do Canadá, lugar onde viveram seus ancestrais, diga-se de passagem, pessoas que tiveram um passado negro. Forçado a encarar seus medos, fracassos e a se adaptar a um novo cotidiano, essa era a chance de Quoyle reescrever sua trajetória. Completamente desconhecido no local, caberia somente a ele mesmo escolher os passos a serem dados e deixar para trás a imagem que é um zero à esquerda. Até a mudança de cidade o longa usa cerca de uns vinte minutos para resumir o apático universo em que está inserido o protagonista, algo que poderia ser positivo caso o restante da narrativa acompanhasse o ritmo acelerado, mas infelizmente as expectativas caem minuto a minuto diante da vagarosidade dos acontecimentos. Apesar dos cortes rápidos que podem confundir, é quase possível afirmar que a introdução soa mais interessante que todo o resto. 

Blanchett com pouco tempo de cena conquista a atenção com sua desprezível personagem e poderia travar cenas memoráveis com um Spacey acuado, mas aí como ocorreria a virada do protagonista? De qualquer maneira, o argumento desenvolvido após o prólogo é dos mais interessantes. Em meio a uma paisagem gélida e habitada por seres solitários, seria reconfortante acompanhar alguém reencontrando ou no caso finalmente conhecendo o prazer que é viver. São as mudanças no comportamento de Quoyle que determinam o fluxo da narrativa, aí a explicação para a lentidão do desenrolar do enredo. Seu amadurecimento surge com a necessidade que encontra em se impor em diversos papéis que até então apenas ensaiava. Bunny não compreende o repentino sumiço da mãe e o pai precisa trabalhar na cabeça dela a verdade sem cultivar a mágoa. Mal amado pela ex-esposa, ele tem que se impor como um homem seguro para cativar a reservada viúva Wavey Prowse (Julianne Moore) por quem se apaixona. Por fim, profissionalmente, de tipógrafo repentinamente ele é promovido a repórter, ocupação que lhe exige um olhar mais apurado sobre as coisas. 


Com olhar mais otimista, Quoyle encara o desafio de dirigir tardiamente sua própria vida e testar o seu dom com a escrita, o problema é que praticamente nada acontece em Newfoundland para virar manchete, sendo que qualquer acidente ganha destaque exagerado (são essenciais fotos de detalhes que possam causar impacto). O jeito é escrever sobre coisas que fazem parte da cultura e rotina local, ou seja, as notícias marítimas, embarque e desembarque de cargas, mas em sua jornada de autoconhecimento o repórter começa a perceber que podem ser muito interessantes as histórias dos moradores. Fica nítido que Hallström buscou desesperadamente realizar uma produção com verniz europeu, captando belas imagens e, como de costume, se cercando-se de um elenco renomado para dar credibilidade à fita. O problema é que até as interpretações são prejudicadas quando o texto não flui de forma eficiente. O roteirista Robert Nelson Jacobs procurou deixar o texto original mais acessível ao público, mas talvez as partes descartadas tenham feito falta. O livro tem uma trama bastante complexa misturando drama, humor negro, lirismo, polêmicas e eventos sobrenaturais. É triste constatar que apesar do início promissor Chegadas e Partidas não consegue envolver e se torna enfadonho a cada novo gancho de trama que puxa, arrematando a colcha de retalhos com linha muito frágil.

Drama - 111 min - 2001

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