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NOTA 9,0 Enfocando os últimos anos de vida do autor que deu origem a palavra sadismo, longa é ágil e interessante, mas fica a dever em perversão |
Não se engane pelo título.
Pomposo e ao mesmo tempo lascivo, Contos Proibidos do
Marquês de Sade tem todos os elementos de um grande filme de
época, mas não apresenta conteúdo libidinoso gratuitamente. Quem espera muita
nudez e tórridas cenas de atos sexuais se decepciona com certeza. A pornografia
surge em forma de prosas e versos de autoria do famoso escritor, mas no fundo o
longa deseja discutir obsessões e o deslumbramento que a crueldade desperta no
ser humano. Nascido em 1740 e vindo a falecer em 1814, Donatien Alphonse
François estudou em um internato jesuíta e teve uma brilhante carreira militar,
mas não foram tais predicados que lhe deram fama. Encarnado com perfeição e
vigor pelo talentoso Geoffrey Rush, o Marquês de Sade escandalizou a França
pós-revolucionária com atitudes infames e seus contos pervertidos repletos de
erotismo, violência e até mesmo obscenidades envolvendo religião. Em seu livro
"Justine e 120 Dias de Sodoma", por exemplo, não se ateve a apenas
falar sobre sexo, mas também agregou ao tema espancamentos, orgias, objetos de
masturbação e tortura, líquidos afrodisíacos e tudo o mais que pudesse ser
considerado perversão. Visto como uma ameaça à sociedade vitoriana, acabou
internado em um sanatório condenado ao confinamento e silêncio pelo resto de
sua vida. Na realidade, de natureza violenta, sua vida foi marcada por idas e
vindas a prisões e sanatórios. O roteiro de Doug Wright, adaptado de sua
própria peça teatral, aborda os últimos anos de vida do escritor em um hospício
na cidade Charenton onde encontra certo apoio e até abusa de benevolência do
padre Abbé Coulmier (Joaquin Phoenix), que tem fé que o paciente sublimará seus
impulsos. Contudo, o interno continuou com sua escrita prolífera graças a ajuda
de Madeleine (Kate Winslet), uma camareira da instituição que levava escondidos
os manuscritos junto com os lençóis para lavar e os entregava a um editor que
publicava os livros clandestinamente causando frisson e escandalizando Paris.
O imperador Napoleão Bonaparte
(Ron Cook), boquiaberto com a repercussão da obra de Sade, envia um médico,
conhecido por conseguir curas através de métodos pouco ortodoxos, exclusivamente para cuidar do autor. A
primeira atitude tomada pelo Dr. Royer Collard (Michael Caine) é tirar das mãos
de Sade as penas e os papéis, mas para um escritor obstinado isso é o de menos.
Nem mesmo com suas mãos machucadas ou até mesmo tendo a língua cortada sua veia
literária é destruída e o desejo de se expressar é maior que qualquer tipo de
dor. Dessa forma, o filme enaltece a
liberdade de expressão e criação artística e mesmo tendo como ponto de partida
uma peça de teatro o roteiro é ágil, envolvente e visualmente rico em sinais e
gestos que substituem palavras, mas importantíssimos para a narrativa. Também
afiadíssimo em diálogos cheios de malícia e de duplo sentido, que devem ter
dado muita dor de cabeça aos tradutores, é até difícil acreditar que seja uma
produção bancada em sua maior parte pelo cinema americano. Co-produzido com a
Alemanha e o Reino Unido, tem muito mais características que o aproximam de um
bom filme europeu livre de amarras comerciais. Wright, em seu primeiro roteiro
para cinema, conseguiu a proeza que muitos outros com anos de experiência
morrem na intenção. Atingiu o perfeito equilíbrio entre o cult e o popular,
assim sua narrativa nunca torna-se cansativa, mesmo usando palavras rebuscadas
e o elenco em tom teatral. Com um acontecimento ocorrendo atrás do outro, o
espectador está sempre desperto e intrigado ao longo das duas horas de projeção
que passam rapidamente por seus olhos. Isso acontece muito porque, apesar de
tudo, é muito fácil nos simpatizarmos pelo protagonista. Embora colocasse seu
prazer acima de tudo e de todos, tendo o sofrimento alheio como força motriz,
Rush adiciona uma irresistível comicidade ao personagem que jamais vemos de
fato praticando atos cruéis, a não ser com sua própria figura a certa altura. É
como se ele atingisse o êxtase simplesmente declamando frases profanas ou
sabendo que com a força de suas palavras conseguisse despertar o desejo sexual
ou de violência em alguém. Caine e Phoenix, diante de tanto histrionismo, podem
parecer mais apagados, mas o médico representa com perfeição a hipocrisia da
sociedade da época. Já o padre fica na indecisão entre a fascinação e o horror
em uma atuação contida, mas que faz as vezes do olhar do espectador quanto a
história. E Winslet, por fim, rouba a cena com uma personagem forte e a frente
do seu tempo, talvez a única capaz de despertar o sentimento do amor no
Marquês.
A sequência de abertura já chama
atenção com o povo em polvorosa diante de uma apavorada mulher a caminho da
guilhotina e prepara o espírito do espectador para o que está por vir, todavia,
esperava-se mais crueldade na narrativa, afinal o longa fala sobre aquele que
deu origem a palavra sadismo. Acostumado a chocar, mas sem parecer apelativo, o
diretor Philip Kaufman, do antológico A
Insustentável Leveza do Ser, estava sem filmar há sete anos e em seu
retorno tendo em mãos um material tão permissivo mostra-se respeitoso demais
com os limites da decência. Em compensação, ousou ao adicionar piadas de humor
negro e sarcásticas, afinal Sade era um sujeito egoísta, não tinha a menor preocupação
com os semelhantes, e assim desafia e tira a paciência de Collard que não
entende como seus métodos tortuosos de trabalho não surtem efeito. O embate
entre duas mentes tão antagônicas é o grande trunfo do longa e Kaufman tirou a
sorte grande ao conseguir Rush como protagonista. O ator domina o espetáculo
declamando com prazer palavras imorais e exagerando propositalmente na
linguagem corporal, algo quase a beira da afetação, mas ele tem tudo sob
controle e nunca deixa sua interpretação cair no ridículo, pelo contrário.
Quanto mais ensandecidos seus atos e diálogos, mais o espectador se sente
instigado a acompanhar a história. É uma pena que o final deixe um pouco a
desejar, mas nem por isso deixe de surpreender. O problema é que parece que o
roteiro busca uma fórmula de ao mesmo tempo justificar e também condenar os
atos do protagonista, um indivíduo guiado por atos insanos, portanto, não há o
que explicar sobre seu comportamento. Contudo, mesmo abordando um personagem
histórico e focado no mundo literário, o peso melancólico do texto, um final amargo,
uma reprodução de época invejável e reunindo um elenco estrelar, Contos Proibidos do Marquês de Sade, teve
míseras três indicações ao Oscar, uma delas felizmente para Melhor Ator para a
magistral atuação de Rush. É pouco para uma produção tão grandiosa e que exala
perfume de premiações, mas não aspirava grande repercussão junto ao público.
Aliás, foi um retumbante fracasso nos EUA e sabe-se lá como conseguiu chegar as
salas de cinema brasileiras. Esse é mais um caso para repensar a importância do
prêmio da Academia de Cinema de Hollywood e colocar em xeque o valor comercial
versus valor artístico de uma obra.
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