NOTA 8,0 Sexo, fama, dinheiro, drogas, humilhação e decadência são os temas presentes na vida da garota que deu nova imagem à prostituição |
Quem é Raquel Pacheco? Atriz,
escritora, artista plástica, uma mulher do meio político, enfim algum nome que
fez algo expressivo pela História do Brasil ou ao menos para seu estado ou
cidade? Em 2009, época das filmagens de sua cinebiografia, tais indagações já
não fariam tanto sentido, mas se você ainda hoje não liga o nome a pessoa é
porque está fora de órbita. Ela simplesmente é a musa inspiradora do longa que
leva seu nome de guerra, Bruna Surfistinha, drama que levou
multidões aos cinemas e ainda alimenta a curiosidade de muita gente, afinal
apresenta uma enxuta visão de como foi a rápida ascensão, decadência e volta
por cima de uma garota de programa que acabou trazendo glamour para aquela que
é considerada a profissão mais antiga do mundo. Claro que ainda existem muitas
pessoas que nem pensam em assistir tal produção, um preconceito que a própria
“celebridade” biografada incentivou, talvez sem perceber, sujeitando-se durante
um bom tempo a participações em programas de TV e cedendo entrevistas que não
estavam afim de mostrar o quanto é dura e perigosa a vida de uma prostituta,
mas sim em esmiuçar os detalhes picantes e curiosos dos atendimentos que Raquel
fez, assim vendendo de certa forma uma imagem positiva da atividade e
afrontando a moral e os bons costumes que boa parte dos brasileiros diz ainda
preservar. Contudo, é preciso frisar que este trabalho do diretor estreante em
cinema Marcus Baldini é uma grata surpresa capaz de deixar boquiaberto quem tem
o pé atrás com a superexposição de Surfistinha na mídia, uma cinebiografia que
segue os moldes hollywoodianos de produções do tipo. Deborah Secco, na época
vivendo um período áureo de sua popularidade, assumiu o papel principal e se
entregou de corpo e alma ao trabalho que lhe exigiu transformações físicas e
imersão na mente e nos sentimentos da personagem para trazer a dignidade diante
do público que a homenageada almejava e não permitir que as cenas de sexo se
transformassem na chave do sucesso do filme. Baseado no livro “O Doce Veneno do
Escorpião”, assinado pela própria Surfistinha e que rapidamente se tornou um campeão
de vendas, o roteiro foi construído por Homero Olivetto, José de Carvalho e
Antônia Pellegrino que preferiram fazer algumas alterações no tipo de narrativa
para adaptar a obra para a linguagem cinematográfica. Originalmente a época da
conturbada adolescência e seu futuro como prostituta que transcende as
barreiras da marginalidade se intercalam, mas no longa foi feita a opção em
manter o foco das atenções quando ela decide abandonar o conforto da casa dos
pais pela liberdade com consequências negativas da vida nas ruas. Mas não pense
que o melodrama toma conta do pedaço. Com momentos de ironia, o filme mostra
que Surfistinha mais que uma profissional do sexo também foi psicóloga e
idolatrada dando dicas para salvar casamentos, aconselhando em problemas, dando
prazer aos menos favorecidos pela natureza e tornado-se uma personalidade que
ajudou a transformar a internet como uma nova fábrica de sucessos.
Os créditos iniciais já mostram aquilo
que o público espera. Deborah surge em imagens de webcam simulando um
striptease para atiçar o espectador. O que surpreende é que ela está com roupas
comuns, carrega um ar de ingenuidade sedutor e não está exuberante como as
cenas vendidas pela publicidade do longa, muito pelo contrário. É a Raquel
adolescente provando que o sexo é inerente a sua personalidade e é dessa forma
que ela deseja afrontar sua família, um ponto em que o roteiro deixa a desejar.
Infelizmente não ficam claros os motivos que fizeram a garota a cortar os laços
familiares e aderir a prostituição, justamente talvez a principal curiosidade
em relação a sua vida. De classe média paulistana e com pais que lhe
proporcionavam certo conforto, mas com moderação, o longa não deixa claro qual
a gota d’água que a levou a tamanha rebeldia. A própria biografada afirma que
jogou tudo para o alto simplesmente porque ansiava independência em todos os
sentidos. O roteiro, porém, nos convence que o estopim teria sido uma
brincadeira que colegas da escola fizeram postando na internet um vídeo
comprometedor dela com um rapaz. Assim, já que ela estava com a fama o melhor a
fazer era deitar na cama literalmente. Ainda assim o filme não explora nesta
fase “inocente” sua compulsão por roubos, a preferência em estar sempre bem vestida
e com roupas da moda e sua rebeldia exposta através de fetiches que realizava
em baladas, detalhes expostos no livro. A Raquel adolescente do filme é
construída para manipular as emoções do espectador. Ela é a pobre coitada que
se dedica aos estudos, não tem ambições profissionais, foi humilhada na escola,
parece um patinho feio e que nasceu em uma família que não é a dos seus sonhos.
De qualquer forma, o espectador que aceita embarcar nesta trama certamente deve
estar tomado pela curiosidade em desvendar o passado daquela mulher que parecia
tão realizada com a prostituição que acaba deixando passar batido esta
introdução meia-boca, inclusive o fato de Deborah não convencer como uma jovem
de 17 anos, até porque tal passagem é rápida e o que mais importa está pó vir.
Intercalando momentos alegres e tristes que Raquel passou como garota de
programa, o longa distribui fartamente cenas que não chegam a ser
pornográficas, mas mostram o suficiente para satisfazer o espectador ou porque
não deixá-lo envergonhado ou até mesmo rindo de certas situações. Quando sai de
casa, Raquel passa a viver na residência de Larissa (Drica Moraes), uma
cafetina que abriga mulheres e explora seus “talentos” entre quatro paredes. O
primeiro programa da garota é um tanto sofrido, mas a recompensa financeira a
entusiasma e assim pouco a pouco ela vai ficando mais desenvolta na função até
que se torna a funcionária mais requisitada do local, o que lhe acarreta
problemas com a inveja de outras até que consegue fazer uma pequena fortuna que
permite a compra de um apartamento e um upgrade na carreira.
De casa nova, agora ela já atende sob o
pseudônimo Bruna Surfistinha e utiliza as ferramentas da internet para
valorizar seu negócio. Com fotos e vídeos provocantes regularmente publicados,
ela ainda passa a conversar diretamente com seus clientes e até fãs, além de
manter um diário virtual contando suas aventuras sexuais e avaliando seus
parceiros, futuramente um espaço dedicado a suas reflexões. A procura por seus
serviços superam as expectativas e ao mesmo tempo em que passa a adquirir
roupas, acessórios e outros bens também aumenta seu vício em drogas e álcool,
algo que já havia sido iniciado em sua época na casa de Larissa. A decadência é
inerente. Esquálida, sem forças e sozinha, ela chega ao limite de suas loucuras
quando passa a atender por uma merreca em um prostíbulo de periferia e eis que
a ficha lhe cai: essa vida não é mais para ela. Todavia, quando tudo parecia
estar perdido ela teve uma chance de recomeçar e soube aproveitar. Não é
segredo nenhum contar como tal história termina afinal a própria Surfistinha,
hoje preferindo ser chamada pelo seu nome de batismo, está vez ou outra cedendo
suas entrevistas por aí e dando a entender que seu caminho ao sucesso foi
tortuoso, mas os resultados compensaram e hoje ela não depende diretamente do
sexo para viver (até quando seus relatos quentes vão lhe render ninguém sabe).
Para apreciar este longa, é preciso esquecer a imagem que temos da Surfistinha
da mídia, até porque os roteiristas retocaram a personagem para que o público
se identificasse. É melhor apreciá-lo como uma história genérica, uma trama que
reúne situações comuns a vida da maioria das garotas de programa, sejam elas
atendentes de suburbanos ou de pessoas da elite. Muitos podem afirmar que Bruna
Surfistinha é apenas um produto comercial e não cinema de verdade. Ok,
a narrativa linear, a “moldagem” de uma protagonista e até a narrativa em off
que as vezes parece ofender a inteligência do público podem ser apontados como
pontos negativos, mas não se pode negar que Baldini ousou em outros aspectos.
Além de inserir as cenas de sexo em momentos estratégicos e justificando suas
necessidades à condução da trama, o diretor usou toda sua experiência no campo
publicitário para criar junto com sua equipe de iluminação, edição e fotografia
interessantes formas de afastar qualquer alusão de pornografia ao seu trabalho.
Não se pode negar que ele entrega cenas impactantes, belas, emotivas e que
dedica atenção especial aos detalhes, desde o sorriso libidinoso de Surfistinha
em seu momento de êxtase, passando por seu olhar melancólico em seu declínio e
até captando com certa ironia os detalhes físicos de seus clientes, que vão
desde garotões de academia até velhos senhores. Há muito que se falar sobre
esse filme se analisarmos suas simbologias e seus detalhes, tanto positivos
quanto negativos, seus acertos e erros, mas o fato é que felizmente este é um
trabalho que corresponde avessamente as expectativas. Não mancha a imagem do
nosso cinema, pelo contrário, de certa forma mostra um amadurecimento de nossa
arte cinematográfica. Qualidades técnicas e respeito ao público podem e devem
ser características obrigatórias de produções comerciais. Quanto ao conteúdo, a
vida da biografada, aí cada um pode tecer seus próprios comentários de acordo
com seus princípios e ideais, lembrando que é preciso respeitar o ditado que
diz cada cabeça é uma sentença. Merece uma conferida e porque não um vale a
pena ver de novo (e sem preconceitos).
Drama - 109 min - 2009
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