sábado, 5 de fevereiro de 2022

OS DEMÔNIOS DE DOROTHY MILLS


Nota 7 Apesar da temática, longa evita clichês e investe em trama mais contundente e intrigante 


As possessões demoníacas alimentam há décadas uma vertente do gênero terror e muitas obras carregam o rótulo de baseados em fatos reais, o que as vezes duvidamos devido as coisas inimagináveis que diretores propõem. Todavia, como já filosofava William Shakespeare, há mais mistérios entre o céu e a terra do que a vã filosofia dos homens possa imaginar. Dentro desse contexto podemos enquadrar os distúrbios de personalidade, casos comumente apontados como bruxaria ou possessão, ainda que a ciência tenha medicamentos que podem controlar o problema. Há referências em estudos científicos sobre o diagnóstico para o Transtorno Dissociativo de Identidade, mas ainda assim há quem discorde e aponte as conclusões médicas como uma desculpa para não se aceitar a presença de espíritos ou entidades malignas, algumas que anseiam por ajuda para se libertarem, assim preferem acreditar em métodos arcaicos de cura, a maioria apoiados em cunho religioso como o exorcismo. Os Demônios de Dorothy Mills é uma grata surpresa que aborda o assunto com uma trama mais consistente e intrigante do que talhada para causar sustos fáceis, mas nem por isso escapa do lugar comum.  

A trama se passa em uma pequena ilha isolada na Irlanda onde vive uma comunidade religiosa que parece ter parado no tempo. A calmaria do local é abalada quando a jovem Dorothy Mills (Jenn Murray) é chamada para cuidar de um bebê, mas é flagrada pelos pais da criança a torturando. A psiquiatra Jane Morton (Carice van Houten) então é recrutada para investigar o assunto, mas a caminho sofre um acidente de carro ao evitar um choque frontal com um veículo ocupado por três jovens, caindo nas águas frias. Ela é salva, porém, é recebida de forma hostil pelos habitantes do local, incluindo a própria tia de Dorothy, Eileen MacMahon (Ger Ryan). Com as entrevistas e observações, logo a médica percebe que a garota sofre de um aparente caso de esquizofrenia, assumindo quatro personalidades distintas: uma criança chamada Mimi, além dos adolescentes rebeldes Mary, Kurt e Duncan. A cada mudança de identidade a jovem assume um tom de voz e comportamento diferenciados, porém, a comunidade local tem uma visão diferente e arcaica da situação, fanáticos religiosos que acreditam que a menina precisa de um exorcismo. 


Jane percebe que a situação está além de suas capacidades conforme investiga e vai juntando indícios de que os moradores guardam segredos obscuros e que refletem diretamente nos problemas de Dorothy. Aliás, a psiquiatra se envolve tanto com o caso que até o espírito de seu falecido filho pequeno ela consegue enxergar na figura de sua paciente. No entanto, o longa não tinha o intuito de provar que há casos tidos como de possessão, mas que na verdade se tratam de problemas psicológicos? Infelizmente, o roteiro de Juliette Sales e Agnès Merlet, esta também diretora, poderia seguir um caminho mais científico e elucidante, mas acaba optando pela trilha mais fácil justificando que as várias personalidades que habitam Dorothy são realmente almas clamando por justiça, ainda que a versão Mimi seja de fato uma criação da mente da garota como um mecanismo de defesa para isentá-la de seus atos. Até certa altura a trama consegue manter a dúvida sobre qual caminho seguirá, o do sobrenatural ou o científico, graças a interpretação de Murray que fortalece tal questionamento com mudanças de fisionomia e de voz convincentes. A própria figura de Dorothy por si só já chama a atenção pela palidez e cabelos loiros quase brancos, destacando-se em meio aos demais habitantes do vilarejo como se ela tivesse um dom especial, mas neste caso interpretado como algo demoníaco.

Com um orçamento modesto, Merlet até que consegue apresentar um trabalho acima da média em termos narrativo, de qualidade nas interpretações e, principalmente, na concepção visual. Se não fosse pelo acidente de carro de Jane logo nos primeiros minutos poderíamos facilmente acreditar estarmos vendo um trabalho de época. Além da sensação de não acompanhar a modernidade, a tal cidade parece imersa num constante clima melancólico, predominando cores frias tantos nos ambientes quanto nas roupas de seus habitantes, detalhes que acentuam a ideia de que o lugar não fora abalado exclusivamente com o escândalo de Dorothy, mas que algo de ruim aconteceu no passado e marcou a todos. É uma pena que o roteiro parece limitado e forçado a se justificar como uma história de possessão, assim perdeu-se a chance de elevar o patamar da obra. Havia potencial no argumento para abordar uma visão mais aprofundada sobre a hipocrisia dos seres humanos, no caso uma comunidade conservadora e buscando se isolar dos males do mundo, quando na verdade eles próprios não são perfeitos. Mais que negar em muitos momentos que Dorothy tem problemas, sejam eles de ordem espiritual ou psicológicos, conforme as investigações da psiquiatra avançam, a população sente a pressão de que seus dias de tranquilidade de fachada estão contados.


Como o próprio título nacional deixa explícito a temática, quem espera ver os típicos clichês de filmes sobre possessão, com pessoas ensandecidas se mutilando, vivenciando situações bizarras ou escatológicas e profanando sandices e palavras de baixo calão, pode se decepcionar com Os Demônios de Dorothy Mills, assim como também pode vir a se surpreender ao perceber que a força deste filme está em seu enredo e atmosfera e não em imagens impactantes. Ao final, a surpresa pode ser ainda maior constatando que uma vez influenciados por preceitos antigos, conservadores e hipócritas os moradores da região não conseguem assumir que a comunidade falhou e compactuam a seguir suas vidas pacatas e tristes, rezando para que nenhum outro forasteiro pise por lá e abale suas rotinas especulando sobre segredos obscuros do local... Até porque mais um passa a constar na lista.

Suspense - 102 min - 2008

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