domingo, 6 de março de 2022

PEIXE GRANDE E SUAS HISTÓRIAS MARAVILHOSAS


Nota 9 Tim Burton deixa um pouco de lado o estilo gótico para contar uma história leve e onírica


Qualquer pessoa que é realmente apaixonada por cinema sabe que o estilo do diretor Tim Burton é inconfundível. Adepto do estilo gótico, das fábulas e fantasias, cada novo trabalho seu se transforma em um aguardado evento antes mesmo da estreia. Porém, ele está longe de ser um Midas do cinema, ou seja, nem tudo que faz se transforma em ouro como é o caso de Peixe Grande e Suas Histórias Maravilhosas, um belíssimo filme que mescla com perfeição realidade e fantasia em uma narrativa agradável e tocante. O longa passou despercebido, ainda que as críticas da imprensa em sua maioria deram parecer positivo à produção. Assistir hoje em dia a esta obra, além de ser imensamente recompensador, nos mostra mais uma vez o quanto as premiações estão voltadas ao comercial e cada vez menos para o lado artístico. Só assim para explicar a rejeição da produção em tais eventos e consequentemente sua exposição prejudicada. O enredo gira em torno das aventuras vividas por Edward Bloom (Albert Finney), um idoso que adora contar histórias de seu passado. Quando jovem, papel interpretado por Ewan McGregor, ele saiu de sua pequena cidade localizada no Alabama para realizar o sonho de dar uma volta ao mundo. Nesse período de andarilho, Edward visitou inúmeros lugares, passou por situações inusitadas e conheceu os mais diversos tipos de pessoas. 

Todos que ouviam estas histórias ficavam fascinados, menos o próprio filho deste homem, Will (Billy Crudup), justamente por não suportar a mistura de realidade e fantasia a qual seu pai estava submerso, motivo que o fez romper relações com ele há muitos anos. Quando Edward está à beira da morte, sua esposa Sandra (Jessica Lange) tenta reaproximar pai e filho, mas ainda Will guarda muitas mágoas por jamais ter o conhecido da maneira que gostaria e crescendo duvidando do seu caráter. Todavia, será que todas as histórias fantásticas do aventureiro Ed, como gosta de ser chamado, são realmente contos no melhor estilo de pescador? Aliás, é justamente com uma história de pescador que o longa começa e brilhantemente justifica o título. A trama roteirizada por John August é baseada no livro homônimo de Daniel Wallace e se divide entre o passado e o presente. Enquanto Will tenta compreender seu pai nos seus últimos momentos de vida, as tais histórias fabulosas vão sendo relembradas pelo idoso e acompanhamos tudo através de flashbacks desde sua infância, momento crucial para determinar o espírito aventureiro do jovem Ed, papel então vivido pelo simpático ator-mirim Perry Walston. O motivo de ele não ter medo de se arriscar e viver a vida intensamente tem uma explicação. Quando criança ele visitou uma bruxa (Helena Bonham Carter), que com seu olho de vidro revelava para a pessoa a maneira como ela iria morrer e com que idade, assim Ed conseguiu prever o quanto poderia aproveitar da vida. 


Conhecemos também outros personagens excêntricos, como o gigante Karl (Matthew McGregory) e o baixinho e espertalhão Amos Calloway (Danny DeVito), que explora a ingenuidade de Ed. Além de tipos esquisitos, mas totalmente de acordo com a proposta do enredo, o protagonista também passa pelos mais diferentes cenários. Brejo, campos floridos, regiões isoladas, campos de guerra e o circo, este último o local mais marcante do longa, principalmente pelas belíssimas imagens que seu colorido proporciona. Além de tudo isso, também temos uma bela história de amor entre o rapaz e sua fiel companheira Sandra, que quando jovem é interpretada pela atriz Alison Lohman. Embora o uso da fantasia seja o aspecto mais característico desta obra, mostrando que Burton não vive apenas em um mundo de cores frias e sombras, mas também pode se locomover com perfeição entre ambientes coloridos e regados à luz solar, o cineasta não deixa de dar ênfase a difícil relação entre pai e filho que vivem em mundos distintos. A reaproximação de Will e Ed é feita aos poucos, sem pressa, exaltando sentimentos e poesia. Todavia, a relação paterna apresentada no longa, embora carismática e tocante, jamais chega a ter um ápice de verdade, assim como a própria vida de Ed. Todos os causos contados são interessantes, divertem e emocionam, mas quase nenhum deles é determinante para compreendermos a trajetória deste sonhador. 

A passagem de Ed pelo circo, como já dito, é a mais marcante visualmente, mas também dramaturgicamente. É lá que ele começa sua história em busca do amor que culminou em seu encontro com Sandra. Graças a essa relação nasceu Will e graças a seu afastamento do pai é que temos um enredo para um belo filme. Muitos dizem que este trabalho apesar de bem realizado está abaixo do padrão de outras produções de Burton. Seria por que neste caso ele pegou leve com as bizarrices, deixou o gótico de lado e investiu descaradamente em emoção? Bem, realmente a primeira vista não parece que estamos vendo um filme do cineasta, inclusive porque seu fiel companheiro Johnny Depp não aparece nem mesmo para fazer uma pequena ponta. Todavia, este é um programão com pinta de cinema europeu, algo totalmente fora dos padrões de Hollywood e até mesmo do currículo do diretor. Tamanha dedicação ao tema se deve muito ao momento que o cineasta passava na época. Ele havia perdido seu pai e sua mãe recentemente, com quem não tinha contato há décadas, e acabara de ter um filho, o que certamente lhe inspirou. Assim, os sentimentos que Will nutria em relação à sua família podem ser comparados ao envolvimento que o próprio Burton tinha com a sua e sem dúvida seu conturbado momento de vida particular, com aspectos negativos e positivos, refletiu diretamente neste trabalho, mostrando um amadurecimento impressionante deste profissional. 


Apesar de toda aura de filme autobiográfico, Burton assumiu a direção do projeto quando seu roteiro já existia e a pré-produção já estava em andamento. Seria este encontro uma das inexplicáveis coincidências da vida? Melhor acreditarmos que sim para que o encantamento seja ainda maior. Com um visual encantador, diga-se de passagem, com o mínimo possível de efeitos especiais, personagens curiosos e cativantes e uma conclusão emocionante que mescla literalmente realidade e fantasia, este filme cai como uma luva para reforçarmos valores e os laços de amizade e familiares. De quebra, somos brindados com mais um belo trabalho de Burton provando que arte, conteúdo, emoção e criatividade de pessoas de verdade ainda valem mais que nossa triste realidade atual quando sons e imagens de primeira, mas produzidos de maneira mais artificial, passaram a ocupar o primeiro lugar de importância na hora de se escolher um filme. Pena que anos depois o próprio cineasta tirou esse gostinho de sonhar de seu público exagerando na dose do artificialismo das imagens digitais de algumas de suas futuras obras. De qualquer forma, Peixe Grande e Suas Histórias Maravilhosas é a prova definitiva para atestar que ninguém fantasia tanto a realidade quanto Burton e só ele mesmo para retratar a fantasia com tanta realidade.

Drama - 125 min - 2003 
Leia também a crítica de:

Nenhum comentário: