sexta-feira, 23 de outubro de 2020

MARCAS DO DESTINO


Nota 8,0 Sem apelações, longa a narra a breve história de vida de jovem portador de rara doença


O preconceito com quem é diferente é o tema principal de Marcas do Destino e o que o faz valer a pena ainda ser visto independente do fator nostalgia. Embora seja um filme dos anos 1980, a discussão que propõe ainda é uma constante na contemporaneidade e infelizmente ainda longe de ser solucionada. O roteiro de Anna Hamilton Phelan conta a história de Roy L. 'Rocky' Dennis (Eric Stoltz), um adolescente com uma doença raríssima chamada displasia craniodiafisária, um problema caracterizado pelo acúmulo de cálcio no crânio e que acarreta no excessivo crescimento dos ossos faciais. Assim, o rosto da pessoa tem um desenvolvimento disforme ao do restante do corpo e sua aparência fica como se usasse constantemente uma estranha máscara, o que justifica o título original, "Mask". A estimativa de quem tem tal enfermidade é que tenha uma vida curta falecendo ainda na infância devido as consequências que podem ser moderadas, como dificuldades de visão e audição, mas também graves envolvendo complicações cerebrais. Contudo, o caso de Rocky desafiou a ciência. Ele avançou a puberdade e cresceu sadio e muito perspicaz, mas isso não o impedia de que anualmente enfrentasse problemas para ser rematriculado no colégio com a justificativa de que seria melhor ele estudar em uma instituição especializada em educação para pessoas com necessidades especiais. Essa é apenas uma das brigas compradas rotineiramente por Florence (Cher), sua dedicada e destemida mãe que não mede esforços para garantir os direitos e dignidade do filho.

Rocky não possuía qualquer doença contagiosa ou psicológica para ser tratado como alguém à margem da sociedade. Ele simplesmente estava fora dos padrões estéticos fixados por uma sociedade preconceituosa e hipócrita, mas isso não o tornava inferior a ninguém, pelo contrário, sua inteligência e bom caráter o faziam superior a muita gente. O jovem também chega a conseguir um emprego como monitor de um acampamento e assim tem a oportunidade de experimentar seu primeiro e único romance com Diana (Laura Dern), uma garota deficiente visual que se encanta por seu caráter, educação e jeito carinhoso de ser e de tratá-la. Realmente Rocky é cheio de vida e seu entusiasmo contagia a todos com quem convive, como Gar (Sam Elliot), um antigo amor de sua mãe em quem acaba enxergando uma figura paterna, e Ben (Lawrence Monoson), seu melhor amigo com quem planejava uma viagem pela Europa juntando as economias de ambos. Quando o filme foi lançado, certamente deve ter sido difícil as pessoas acreditarem que a narrativa é baseada em uma história real, pois abordava uma doença de pouca difusão na mídia e só mesmo médicos especialistas tinham conhecimento e acesso a livros e estudos a respeito. Hoje basta lançar o nome da anomalia ou até mesmo do filme em uma página de pesquisas na internet e temos diversas fontes de informações, inclusive à trajetória completa do Rocky da vida real. 


Nascido em 1961, Rocky veio ao mundo aparentemente como uma criança qualquer. Somente aos dois anos de idade foi diagnosticado com a anomalia. Na época ainda sem muitos dados científicos sobre a doença, os médicos já preparavam a mãe para que o pior pudesse acontecer ainda na infância, mas ela nunca aceitou tais opiniões e fez de tudo para que seu filho tivesse o máximo de qualidade de vida possível. Com todo esse amor e dedicação dela e, principalmente, a força vontade dele próprio, Rocky sobreviveu até os 16 anos e faleceu dormindo após uma forte dor de cabeça, algo constante no seu dia-a-dia. Seu corpo foi doado para pesquisas e sua memória preservada inclusive por um póstumo fã clube. O filme veio para sacramentar que a breve passagem de Roy nesta vida não foi em vão e, ao contrário do que uma breve sinopse pode sugerir, a produção passa longe do dramalhão e se revela uma história de esperança e coragem com um clima alto astral, assim como era a personalidade do homenageado. Mesmo com as situações de humilhações rotineiras, no filme mostradas de forma mais veladas com desvios de olhares e comentários disfarçados, o jovem não se deixava abalar e procurava viver intensamente cada dia como se fosse o último. Stoltz mostra-se absolutamente à vontade no papel, mesmo interpretando o tempo todo escondido sob uma intensa maquiagem merecidamente vencedora do Oscar. A dedicação foi tanta que muitos dos envolvidos na produção só foram conhecer seu verdadeiro rosto nos eventos de lançamento do longa que enfatiza a naturalidade com que Rocky enfrentou a doença jamais colocando-se na posição de vítima. 

Quando o jovem vem a se apaixonar, o texto cai numa armadilha podendo ser acusado de hipocrisia. Diana não o enxerga fisicamente e se apaixona pelo seu jeito de ser, mas seus pais não o veem da mesma forma. Por puro preconceito ou consciência de que a relação seria apedrejada pela sociedade, bondade pouco provável pelo pouco que observamos do casal, eles inventam desculpas toda vez que Rocky telefona para ela. Seria mais desafiador se o encantamento fosse de uma garota sem qualquer deficiência, assim deixando o conceito de identificação de lado e imperando apenas o amor. De qualquer forma, o relacionamento é mostrado com muita delicadeza e credibilidade. Já Florence ganha bastante destaque na trama principalmente por ser um perfil que foge de estereótipos. Apesar de muito zelosa e amorosa, é uma mãe imperfeita, fora dos padrões. Um tanto liberal, ela se descontrola em algumas ocasiões por conta do vício em drogas que pode ser justificado como uma forma de compensação às suas frustrações. Separada do marido, que não faz questão alguma de ter contato com o filho, é certo que apesar da confiança e entusiasmo que tenta transparecer, no fundo, ela se ressente de projetos que precisou abandonar e sofre em silêncio pelas limitações que a deficiência de Rocky impõe também a ela. Não é fácil viver com a dúvida de quanto tempo terá seu filho ao seu lado, assim Florence revela-se um papel bastante complexo e de apelo dramático. Cher surpreende com a naturalidade que dá vida à essa mulher comum que em nada lembra ao glamour exalado pela atriz e cantora. Contida, ela tem aqui uma de suas melhores atuações, premiada no Festival de Cannes, mas absurdamente preterida pelo Oscar que nem sequer lhe deu uma indicação, tentando corrigir o erro pouco tempo depois lhe dando como consolação o prêmio por Feitiço da Lua


A repercussão de Marcas do Destino levou Cher a se tornar porta-voz de uma associação em prol de estudos e de apoio às famílias com algum membro acometido pela doença. Apesar do bom resultado final, durante as filmagens o diretor Peter Bogdanovich discutia muito com a atriz, pois a considerava inexperiente e muito difícil de se lidar. De fato, ela assumiu ter dificuldades para sustentar longas cenas e com muitas falas, mas o cineasta contornou as dificuldades também cedendo um pouco e mudando seus planos de filmagem, assim recorrendo várias vezes a closes da atriz a fim de capturar seu carisma e a verdade passada por seus característicos olhos carregados de melancolia. O diretor aceitou o projeto em homenagem à memória de sua namorada, a modelo e atriz Dorothy Stratten, que tinha certo fascínio pela história real de Joseph 'John' Merrick, então já retratada no filme O Homem Elefante. Por alguma razão desconhecida ela se julgava uma pessoa deslocada da sociedade e se identificava com a triste trajetória deste portador de uma rara doença. Bogdanovich viu na história de Rocky coincidências e de um projeto pessoal acabou realizando uma importante contribuição para o cinema e também a ciência e medicina. Após o filme, estudos mais aprofundados sobre a doença passaram a ser realizados, assim melhorando a qualidade e ampliando o tempo de vida de outros portadores antes fadados a uma triste e curta existência.

Vencedor do Oscar de maquiagem

Drama - 114 min - 1985

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