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NOTA 8,0 Intimista e com atenção voltada ao que acontece a uma pessoa após um trauma, longa francês recicla temática do sequestro e foge de clichês |
A publicidade do baseado em fatos
reais é a arma de muitos cineastas para fazerem com que seus trabalhos sejam
vistos, mas há quem prefira a discrição, seja para se preservar de polêmicas ou
até mesmo problemas com a justiça. O diretor e roteirista francês Frédéric
Videau não deixou claro seus motivos, mas o fato é que logo no início do drama De Volta Para Casa ele faz questão de afirmar
que o que veremos a seguir é acerca de um caso puramente ficcional, mas na
realidade há muitos elementos na narrativa que lembram ao caso de Natasha
Kampusch, uma garota austríaca que foi sequestrada aos dez anos de idade e
mantida enclausurada em um porão até completar dezoito anos. O próprio cineasta
se esquivou de qualquer culpa afirmando que o episódio lhe serviu apenas como
referência, mas enfatizou que esta história é sobre Gaëlle (Agathe Bonitzer),
personagem que criou, detentora de seus próprios conflitos, e ponto final. Ao
contrário do perfil que imaginamos de uma pessoa que passou pela experiência de
crescer longe da família e sob pressão constante, a jovem não é apresentada
como uma pobre vítima e sim como uma adolescente rebelde e impulsiva que
aprendeu ao longo dos anos a conviver com Vincent (Reda Kateb), seu
sequestrador. O longa começa com a jovem já sendo subitamente libertada, mas a
narrativa segue entre idas e vindas no tempo oferecendo ao espectador um
quebra-cabeças a ser montado, uma fragmentação que faz alusão a confusão mental
dela ao ser obrigada a confrontar uma realidade totalmente alheia a que estava
acostumada. A trama então segue duas linhas narrativas paralelas e de épocas
distintas. O momento atual mostra sua readaptação à sociedade, principalmente a
reintegração com sua família, e em flashbacks são revelados detalhes a respeito
da complexa relação que mantinha com seu algoz. Por ter feito a passagem de
criança para adolescente sem referências de comportamentos de outros de idades
semelhantes, Gaëlle também tem um perfil quase bipolar, alternando momentos de
extrema infantilidade e outros de maturidade súbita.
Nas cenas de cativeiro, maioria
feitas pela atriz Margot Couture que interpreta a protagonista quando criança,
acompanhamos diversas tentativas de fuga e manifestações de revolta. Até um
simples pedido para comprar um hidratante corporal se transforma em motivo de
discussão. A cada retorno de Vincent, a esperança da menina em dar um jeito de
fugir do cativeiro se renova, mas com o tempo parece conformar-se com a
situação. Dessa forma, o porão da casa do
sequestrador passa a ser a sua referência de mundo. Ali ela cresce lendo
diversos livros e ouvindo música como fonte de entretenimento e aprendizado,
mas sem perspectivas para o futuro. O roteiro sabiamente não faz julgamentos
quanto ao caráter do criminoso e opta por caminhos a fim de humanizá-lo. Não
temos em cena um ser monstruoso, com tendências psicopatas e nem mesmo com
traços de pedófilo. Seu perfil é o de um homem normal, solitário, sem muitas
posses e que tem seus momentos de afeto e também de agressão para o convívio
com Gaëlle. Clinicamente parece não ter qualquer tipo de patologia. Seu
problema é mesmo em relação a sua posição na sociedade, como alguém à margem de
tudo que clama por um pouco de atenção. A relação que os dois constroem é
bastante peculiar. Não é amor, tampouco amizade, tem seus momentos de
compreensão, mas também é marcada por rancor e ódio. Em paralelo, acompanhamos
momentos da vida da jovem em liberdade, quando reencontra a mãe Sabine (Noémie
Lvovsky) e o pai Yves (Jacques Bonnaffé), agora divorciados. Para colaborar na
readaptação, a moça passa a frequentar o consultório da Dra. Anne (Hélène
Fillières), uma psicóloga que a ajuda a lidar com seus sentimentos confusos,
entre eles a culpa já que acredita que o sequestro foi um fator decisivo para
seus pais romperem. Logo na primeira sessão a moça mostra-se provocante e
agressiva, testando os limites da profissional reproduzindo o mesmo tipo de
comunicação que mantinha com seu algoz. Ela também fala muito em tingir os
cabelos, como se a mudança de visual fosse crucial neste momento. Poderia
ajudar, mas de nada adiantaria se ela não se transformasse por dentro.
Apesar da temática pesada,
salientada por uma ambientação escura, iluminação quase sempre baixa e closes
nos atores para ampliar a sensação intimista, o longa não traz cenas chocantes de
agressões físicas e sim de violência psicológica, a maioria delas encenadas
quando Gaëlle já está em liberdade. Como seu caso chamou a atenção da imprensa,
a garota sente-se encurralada nas ruas sob olhares críticos e curiosos, assim
refugia-se em casa ou no consultório psiquiátrico onde se sente protegida. Os
antigos amigos também soam como ameaças, estranhos que também a observam com
distanciamento como se ela fosse um animal selvagem, em outras palavras, alguém
a ser domado para poder novamente ser inserido na sociedade. Esse é o grande
propósito do filme: especular o que ocorre depois de uma experiência traumática
como a vivida por Gaëlle. Dessa forma, Videau esquiva-se da obrigação de dar
explicações sobre os motivos que levaram ao sequestro e muito menos oferece
respostas acerca do encerramento do caso. Seu interesse é descobrir como seria
a vida pós-cativeiro, uma forma peculiar de trabalhar a temática mantendo a
imparcialidade. O espectador não é em momento algum direcionado a torcer ou
condenar alguém, apenas observa os fatos com certo grau de distanciamento. Se
em termos de ações o filme fica a dever, principalmente quanto a momentos de
catarse tão comuns a um tema propenso a acessos de fúria ou tristeza, é nas
interpretações que encontramos sua força motriz. Todo o elenco está impecável.
Bonitzer transita pelos mais variados tipos de emoção com total desenvoltura ao
passo que Kateb consegue atrair compaixão e respeito a um perfil que tinha tudo
para despertar ódio. Os pais de Gaëlle também se destacam ao escolher o
silêncio perturbador ao invés do extravasar de emoções. Respeitando a
complexidade dos personagens e da situação como um todo, De Volta
Para Casa, como não poderia deixar de ser visto o seu caminhar,
deixa a conclusão em aberto para o espectador imaginar o destino da
protagonista. Apesar da narrativa truncada por conta das idas e vindas no
tempo, é uma opção que foge da mesmice hollywoodiana em que sabemos muito bem o
começo, o meio e o fim de histórias de sequestros, com raríssimas exceções.
Drama - 90 min - 2011
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