![]() |
NOTA 8,0 Drama com aspecto documental retrata o amadurecimento de uma garotinha diante das dificuldades e estranha forma de agir de seu pai |
Dramas fortes narrados pela ótica
inocente de uma criança há tempos se tornou uma espécie de fórmula premiada,
filmes que facilmente envolvem o espectador e chegam às premiações de mansinho,
mas que muitas vezes acabam chamando mais a atenção dos que os títulos mais
bombados. Vencedor de dois prêmios em Sundance e também da Caméra d’Or no
Festival de Cannes (dedicado a homenagear diretores estreantes), ambos em 2012,
Indomável
Sonhadora surpreendeu muita gente com suas quatro indicações aos Oscar
2013 em categorias principais. O longa de estreia do cineasta americano Benh
Zeitlin traz um retrato literalmente cru da infância de uma garotinha, mesmo
assim um período repleto de esperança e alegrias. Com apenas 30 anos de idade o
diretor foi ousado ao procurar mostrar uma visão pouco apresentada pelo cinema
americano: a constatação de que os Estados Unidos também tem suas regiões
miseráveis, lugares tão pobres e precários quanto tantos outros conhecidos no
Brasil, por exemplo. Adaptado da peça “Juicy and Delicious”, escrito por Lucy
Alibar que também se encarregou do script da versão cinematográfica dividindo o
crédito com Zeitlin, a trama não possui muitos diálogos, dando predileção a
narração em off da protagonista, a pequena Hushpuppy (Quvenzhané Wallis), uma
garotinha de apenas seis anos que cresceu sem a presença da mãe e que vive com
o pai Wink (Dwight Henry) no sul da Louisiana em um vilarejo pequeno e distante
dos centros urbanos. A distância não é apenas quanto a localidade, mas também
em termos de cultura, saúde, economia e tantos outros aspectos. O local é
chamado pelos poucos habitantes de Banheira, uma alusão ao fato de
periodicamente a região ser alagada por fortes tempestades e as pessoas ficarem
ilhadas. Embora o cenário do filme seja fictício ele é inspirado em uma ilha
real, a Isle de Jean Charles, que constantemente perde mais espaço para o mar.
A coincidência entre a realidade e a ficção é que seus moradores são teimosos e
insistem em permanecer em suas casas mesmo em condições precárias e com a água
batendo em seus joelhos como se esperassem que um milagre de uma hora para a
outra os salvaria. Wink sempre ensinou a filha a ser forte para sobreviver aos
percalços da vida, como mostram as cenas em que ele e a garota enfrentam uma
forte chuvarada na calada da noite, mas o relacionamento entre os dois ao mesmo
tempo em que demonstra existir carinho contraditoriamente somam inúmeros
momentos de afastamento.
Hushpuppy perambula diariamente
em meio a matagais e animais como porcos e galinhas tentando seguir os passos
do pai que se mostra quase sempre arredio as demonstrações de afeto da filha.
Eles não vivem juntos. Wink tem como moradia um precário barraco enquanto a
menina mora em um trailer velho, o que a obriga a se virar como adulta em
algumas situações e a se expor a riscos como acender um fogão com a ajuda de um
incinerador. Eles só se encontram para fazerem as refeições. O distanciamento
tem um motivo que a garota pode não compreender o que explica seu espanto com
os rompantes de fúria do pai. Wink sofre de uma grave doença (não revelada em
nenhum momento), mas o fato é que ele sabe que irá morrer em breve e que
deixará uma criança a mercê da sorte, portanto, tenta do seu jeito prepará-la
para um futuro repleto de dificuldades. Sem perceber, a menina vai assimilando
todos os ensinamentos do pai e amadurecendo cada vez mais, porém, isso não a
impede de manter a ternura, a ingenuidade e a imaginação apurada inerente a
qualquer criança. É com essa pureza de espírito que Hushpuppy evoca a
“presença” da mãe em momentos de dificuldades travando diálogos que ajudam a
confortá-la. Para dar movimentação a trama, o roteiro também abre espaço para
participações rápidas de coadjuvantes, vizinhos da garotinha que também tentam
sobreviver em um abrigo após o alagamento da vila, todos com o simples desejo
de poderem voltar para suas casas, ou melhor, para o pouco que sobrou delas.
Esses personagens, como Miss Bathsheeba (Gina Montana), tem aparições rápidas,
mas todos contribuem de certa forma para a educação de Hushpuppy, seja
ensinando a verdade nua e crua tal qual seu pai fazia ou mostrando a ela que
mesmo nos momentos de dificuldades é preciso saber ter otimismo e procurar
sorrir ao invés de chorar. A câmera quase sempre muito próxima aos rostos dos
atores pode incomodar inicialmente, mas é um recurso benéfico para estabelecer
uma conexão do espectador com quem está em cena. É interessante notar que
Zeitlin deu a sua obra dramática ares de documentário e de fantasia também.
Assim como em Onde Vivem os Monstros ou
O Labirinto do Fauno em que os
infantes protagonistas imaginavam um mundo irreal para fugir da dura realidade,
neste caso a garotinha se imagina encarando grandes animais pré-históricos, os
auroques, uma espécie extinta de grandes bovinos que surgem como uma metáfora
ao seu problema real. Se ela pode encará-los frente a frente e até domá-los, o
que pode lhe afligir em sua trajetória pela sobrevivência? Tais animais,
diga-se de passagem, são frutos de trucagens artesanais e criatividade e podem
não ser bem compreendidos em um primeiro momento, mas no clímax do longa eles
fazem todo o sentido e potencializam a mensagem da obra visualmente.
A pegada
documental deste longa fica por conta do estilo de filmagem e outras liberdades
tomadas por Zeitlin. Assumidamente uma
produção independente e livre da interferência de terceiros, o diretor opta em
vários momentos por utilizar a câmera de modo livre para ter mais mobilidade
para seguir os passos dos personagens, assim por vezes a imagem é trêmula e
nervosa, um efeito que casa perfeitamente com a proposta de inserir o
espectador no ambiente selvagem do vilarejo que serve como cenário principal.
Este local, ironicamente, fica ao lado de um dique que protege os moradores da
invasão das águas dos rios, mas a barreira também é mais um fator que ajuda a
isolar tal população, resguardando também seus valores sociais. À primeira
vista o cotidiano de Hushpuppy e seus vizinhos é associável a rotina de animais
cujo instinto de sobrevivência pode torná-los agressivos, mas na realidade a
noção de solidariedade existente entre todos que vivem lá é para deixar
qualquer habitante metropolitano envergonhado, afinal de contas é levado muito
em consideração o convívio harmônico com o próximo, assim a garotinha não pensa
duas vezes antes de partilhar o pouco de comida que tem até mesmo com os bichos
que cruzam seu caminho, por exemplo. O diretor, no entanto, não explora a
miséria desse povo clamando por assistência, pois eles mesmos não fazem questão
disso. Cresceram com liberdade e prezam pela individualidade. Aceitar a ajuda
do Estado seria como se sujeitar aos mandos e desmandos de pessoas que jamais
compreenderiam seus estilos de vida, porém, chega um momento em que não é mais
possível recusar o auxílio. Quando os problemas de saúde já existentes ou
ocasionados pela insalubridade da região pós-inundação passam a incomodar, os
“escondidos” precisam cruzar a fronteira que os separa da civilização moderna
em busca de tratamento médico, mas a ignorância mais uma vez se torna um
empecilho. Wink fez a filha prometer que quando não lhe restasse mais esperança
ela não negaria o desejo de queimar o seu corpo doente, pois ele preferia virar
cinzas a ter que “ficar preso na parede” (referência aos fios que conectam
aparelhos para manter o paciente vivo e consequentemente sem mobilidade). Indomável
Sonhadora, por sua estética suja e cenas repletas de correria e
conversas paralelas e entrecortadas, pode causar estranheza no início, mas
conforme a narrativa avança percebemos a familiaridade do tema com tantos
outros filmes que buscam falar de relações familiares e de amizade, o que pode
decepcionar um pouco algumas pessoas que esperavam uma produção mais apurada ou
ousada. Todavia, a previsibilidade da trama é atenuada por atuações naturais e
empáticas de um elenco desconhecido e escolhido entre populares. O amadorismo
das interpretações traz ainda mais realismo à obra atingindo o ápice com a
cativante Quvenzhané Wallis escolhida entre mais de 3.500 candidatas. Na época
das filmagens com apenas 6 anos, sua surpreendente indicação ao Oscar comprova
que sem dúvidas ela é a alma desta produção, a responsável por fazer o
espectador mergulhar em um universo inóspito, mas ao mesmo tempo que nos
transmite a sensação de que dias melhores virão. É a esperança de Hushpuppy que
ajuda a desatar o nó na garganta ao subirem os créditos finais.
Drama - 92 min - 2012
Nenhum comentário:
Postar um comentário