NOTA 8,5 Drama épico aborda a questão da pena de morte e ao mesmo tempo narra a história de um casal que afronta a hipocrisia |
A condenação de uma pessoa a morte para pagar pelos crimes que cometeu
até hoje é um assunto polêmico e que divide opiniões, porém, tal discussão já
dura séculos. Se hoje em dia a pena de morte pode ser sinônimo de câmaras de
gás, injeções letais e cadeiras elétricas, há séculos atrás ser condenado era
ser sentenciado a ser guilhotinado em praça pública, um pequeno show masoquista
para o pessoal a favor da execução e uma tortura para os demais que eram
obrigados a ver tais cenas para as assimilarem como forma de punição para
aqueles que infringissem as leis, assim forçando-os a seguir padrões rígidos de
moral e costumes. Tratar de tal temática não é tarefa fácil, mas o cineasta
francês Patrice Leconte encontrou uma forma razoavelmente mais amena para
abordá-la aliando-a ao poder que a paixão exerce sobre uma pessoa e ao secular
embate entre os defensores da sinceridade e os adeptos da hipocrisia. Co-produção
entre a França e o Canadá, A Viúva de
Saint-Pierre é um épico que praticamente divide-se em dois
atos que se relacionam intimamente. No primeiro temos o nascimento de um
excêntrico triângulo amoroso que coloca seus integrantes na mira das pessoas
mais conservadoras, embora consiga atiçar a curiosidade de algumas delas. Já da
metade para o final vemos o drama de um homem prestes a ser guilhotinado cujo
fim trágico pode mudar radicalmente a vida de outros. O roteiro criado pelo
cineasta em parceria com Claude Faraldo conta uma história que começa a ser
desenvolvida em 1849 na até
então tranquila e pequena ilha de Saint-Pierre, território francês perto da
costa canadense (na época parte do Canadá era possessão da França). A calma do
lugar é rompida quando dois marinheiros bêbados, Ariel Neel Auguste (Emir
Kusturica) e Louis Ollivier (Reynald Bouchard), matam de forma insensata
Coupard (Michel Daigle), um morador do vilarejo. Ambos são sentenciados a
morte, mas Ollivier, que tinha sido condenado a trabalhos forçados, morre em um
acidente a caminho da prisão. Já o outro réu, que confessou ter dados os golpes
de faca fatais na vítima por um motivo tolo, fica aguardando a chegada de uma
guilhotina, pois a República exige que qualquer civil que tenha recebido a pena
capital tem de ter a cabeça decepada para servir de exemplo. Além do
instrumento de execução, também é necessário um carrasco, pois não há ninguém
na ilha que queira exercer esta função. Enquanto aguarda que os problemas para
sua execução sejam resolvidos, Neel fica confinado em uma cela que é muito
próxima da casa de Jean (Daniel Auteuil), o capitão que controla a polícia e o
presídio. Logo sua esposa, Pauline (Juliette Binoche), também conhecida com
Madame La (chamada de Madame A na tradução em português), sente vontade de
conhecer o prisioneiro e lhe pede que a ajude a cuidar de seu jardim, claro que
com o consentimento de seu marido que jamais lhe negou pedido algum.
O governador (Michel Duchaussoy)
solicita ao governo da República que seja enviada a Saint-Pierre uma guilhotina
o mais rápido possível para que as exigências legais sejam cumpridas. A Martinica
coincidentemente acabara de receber um novo instrumento de execução e aceita
cedê-lo, mas o transporte através de navio resulta em uma viagem que dura meses
e assim Neel acaba se tornando um protegido do capitão e de sua esposa, esta
que acredita que no fundo ele não é um homem tão cruel e defende sua
reabilitação. O casal o trata com muita generosidade e respeito e em
retribuição ele executa serviços para eles e depois também passa a atender a
comunidade, com Pauline sempre o guiando para o caminho da redenção. Ela vê
muito potencial neste homem aparentemente rude e também o incentiva a estudar.
Porém os homens da pequena elite francesa que governa o lugar criticam o apoio
que o casal oferece ao réu, ainda mais quando as mulheres mais refinadas
começam a fazer intrigas sobre um possível relacionamento amoroso entre os três
ou ao menos sobre a paixão exagerada de Jean a ponto de ceder a esposa a outro
para vê-la feliz. Paralelo a essas fofocas, Neel logo se torna uma pessoa
popular entre os mais simples, principalmente depois que salva uma jovem em
perigo e o bar que serve como uma das poucas diversões dos plebeus, e isto
enfurece as autoridades e faz com que o governador da ilha não queira só
executá-lo, mas também que Jean seja castigado por sua benevolência com o
prisioneiro. O título original desta obra, felizmente traduzido à risca para o
português, tem um duplo sentido, pois a palavra viúva em francês também pode
significar guilhotina, nada mais apropriado para uma máquina que literalmente
fabrica viúvas. A produção não foi um sucesso extraordinário em seu país natal,
apesar de muito elogiado pela crítica européia, mas desembarcou em muitos
países com status de cult e tendo suas primeiras exibições em festivais, como
ocorreu no Brasil cuja primeira aparição aconteceu na Mostra Internacional de
Cinema de São Paulo. Leconte, que já havia explorado a campo dos filmes de
época em Caindo no Ridículo com o
qual concorreu ao Oscar de Filme Estrangeiro, neste caso se inspirou em alguns
fatos reais para realizar esta obra que fala de amor, respeito, solidariedade e
o direito a vida. Quantas pessoas não foram mortas no passado sem direito a
redenção ou por motivos banais? Podemos compreender que o longa sintetiza
diversos episódios semelhantes, mas em nenhum momento é citado que realmente
existiu um Neel na vida real. Joseph Auguste Neel nasceu na mesma ilha, só que
em 1860, e também foi preso e condenado a morte por ter assassinado um homem
com a ajuda de um amigo. Como o enredo se passa no século 19, diga-se de passagem,
o que inspira a uma parte técnica e visual das mais requintadas o que de fato
nos é oferecido como é tradição nos épicos europeus, o diretor teve uma atitude
corajosa em trabalhar com um roteiro que trata de temas ásperos para a época,
mas ainda bem que tem o cinema e a literatura para provar que muita coisa
errada ou mal vista pela sociedade impregnada de falso moralismo existia por
debaixo dos panos. Neste caso não se tratam de equívocos, mas sim das tais
atitudes condenáveis que chocavam os puritanos, incluindo os falsos.
A relação de Pauline com Neel é
ambígua. Ao mesmo tempo em que percebemos que ela é apenas uma mulher bondosa
tentando evitar uma injustiça, entendemos que ela nutre algum tipo de
sentimento mais carinhoso pelo ex-marinheiro, algo que fica ainda mais latente
com seus olhos cheios de lágrimas quando ele revela estar apaixonado e com
intenções de formar uma família com uma simplória jovem. É como se esta mulher
se conformasse em viver um amor platônico e Jean, por amar exageradamente a
esposa, aceita tal situação a ponto de afrontar os poderosos locais que não
compactuam com a forma que o casal vive. Além de ajudar um prisioneiro, os
protagonistas ainda vivem ilegalmente, pois não são casados. A relação deles é
baseada na admiração e confiança mútua e o marido não sente ciúmes da extrema
dedicação da mulher com um estranho, mas sua conduta muda ligeiramente na
segunda metade do filme quando ele é obrigado a ser mais enérgico tanto com a
companheira quanto com seu protegido já que sua própria vida é colocada em jogo.
Por conseguir sempre tudo que deseja do marido, Pauline foi apelidada como
Madame La, oriundo de “la capitaine” (a capitã). E realmente é essa personagem
quem comando esta obra, é ela que ajuda a apaziguar a angústia da espera da
morte para Neel e também é a própria que pode abreviar a vida de seu marido.
Aliás, a escolha do elenco principal foi fundamental para abrilhantar este
trabalho. Binoche se entrega completamente ao papel de heroína, assim como
Auteuil, um dos atores mais versáteis e que mais se dedica ao cinema francês. A
princípio seu personagem pode parecer passivo ao lado de sua mulher e que a
qualquer momento pode ser traído, mas consegue defender suas crenças e valores
morais até o fim. Apesar de poucos momentos de intimidade, eles conseguem nos
fazer crer no amor de Pauline e Jean e confirmar a vocação para caridade do
casal. Contudo, o grande destaque é a presença do diretor bósnio Kusturica
estreando como ator e surpreendendo no papel do condenado, mostrando com
perfeição a transição do homem rude e sem objetivos para o cidadão admirado e
bem encaminhado. Facilmente esquecemos que ele é um prisioneiro e nos
afeiçoamos graças ao seu carisma e espontaneidade, algo compartilhado com boa
parte dos personagens anônimos da trama que irão se opor a sua execução. Curiosamente,
mesmo sendo uma história datada, Leconte conseguiu uma forma de aproximá-la da
atualidade. O longa nos mostra que o período que separa a condenação e o
momento de execução pode ser decisivo para a redenção e que uma pessoa pode ser
salva e reabilitada a viver em sociedade de forma digna e prestativa. Deveria
ser a lógica que regesse a vida de um condenado que vai parar na prisão, mesmo
sabendo que depois de cumprida a pena seria libertado. O período de
enclausuramento serviria para reflexão, aprender coisas boas e até um ofício
para quando fosse libertado, mas a realidade não é assim romântica,
infelizmente. Estamos no século 21 e a discussão sobre a pena de morte ainda é
acalorada e em países como o Brasil onde as condenações resultam em clausuras
de alguns anos os criminosos quando libertos saem piores do que quando entraram
nas prisões. Leconte, com sua habilidade em trabalhar com as emoções dos
personagens mescladas a enredos com conteúdo e panos de fundo históricos,
transformou A Viúva de Saint-Pierre em uma bela obra de
arte que deve agradar ao público mais intelectual e a quem goste de histórias
humanas e com mensagens. Infelizmente, mais um grande filme vergonhosamente
fora do mercado brasileiro, raríssimo de se encontrar em mídia original (quem
possui tem um tesouro) e que quando lançado não recebeu o seu devido respeito.
Drama - 112 min - 1999
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