quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

A NOIVA SÍRIA

NOTA 8,0

Drama tem momentos de humor
graças aos absurdos que podem
acabar com um casamento devido
a conflitos étnicos e políticos
Tem gente que sonha com festas de casamento, aniversários, reuniões de fim de ano, enfim qualquer tipo de festejo. Para outros tais eventos são sinônimos de estresse e confusão, principalmente quando há familiares envolvidos, mas só o fato de estar em um ambiente onde provavelmente poucos convidados se conhecem ou existe algum tipo de conflito mal resolvido já gera certa tensão. O cinema sempre gostou de explorar estes tipos de problemas caseiros que podem acabar mal ou simplesmente ficarem como uma lembrança hilária na memória de que os vivenciou, neste caso um prato cheio para fisgar a emoção do público que facilmente se identifica com a narrativa. Bem, o início de A Noiva Síria sugere algo singelo assim, mas conforme a trama avança se torna algo bem mais sério e relevante. Desde os atentados de 11 de setembro de 2001 o Oriente Médio como um todo tem chamado a atenção e coube ao cinema a função de quebrar a imagem que boa parte da população mundial passou a alimentar da região. Por lá não existem apenas guerras sangrentas e homens-bombas, porém, a cultura local é um tanto exótica e curiosa. Você sabia que existem pessoas que se comunicam através de megafones porque não podem ultrapassar territórios demarcados? Que para conseguir atravessar essas áreas é preciso vencer uma série de burocracias? Que existe um povo que não tem nacionalidade definida? E você aceitaria se casar com alguém que nunca viu e, pior ainda, abrir mão de sua própria família por conta deste ato? Parece coisa de décadas atrás, mas por incrível que pareça ainda é uma realidade e é em torno destas peculiaridades que gira o filme do israelense Eran Riklis, de Lemon Tree, um agradável drama com alguns toques involuntários de humor. Coproduzido entre França, Israel e Alemanha, a trama roteirizada pelo próprio cineasta em parceria com o palestino Suha Arraf se passa na fronteira entre Israel e a Síria, nas colinas de Golan, região habitada pela comunidade drusa Majdal Shams, um povo cuja nação não é definida, mas vive sob o domínio israelense desde 1967. Qual a importância disso? Simplesmente tal povo fica em meio a um fogo cruzado entre muçulmanos e judeus e entre eles mesmos há uma divisão entre simpatizantes de cada um desses lados. É justamente nessa área que estão acontecendo os preparativos para o casamento de Mona (Clare Khoury), uma jovem drusa que vive na parte israelense. O evento está mobilizando todas as atenções, principalmente de seus familiares, e o longa concentra suas ações neste único dia a partir das poucas horas que antecedem a cerimônia que será realizada de forma pouco convencional.

Hammed (Makram J. Khoury), o pai da noiva, é um homem muito respeitado no vilarejo e está em liberdade condicional devido ao seu engajamento em atividades políticas, mas parece não ter juízo e já está envolvido em uma nova manifestação, mesmo sabendo que também está proibido de se aproximar da fronteira onde será realizada a cerimônia de casamento. Ele há anos está afastado de seu filho mais velho, Hattem (Eyad Sheety), este que o afrontou ao abandonar a família para se casar com uma médica russa, Evelyna (Evelyn Kaplun), porém, com o casamento de Mona chegou a hora do inevitável reencontro. Contudo a vinda de uma estrangeira causa também a ira dos líderes da comunidade que advertem Hammed que ele poderá ser banido do grupo. Outro reencontro que deve deixar esse homem respeitado pela comunidade em maus lençóis é a volta de seu outro filho, Marwan (Ashraf Barhom), um rapaz trambiqueiro e mulherengo que ganha a vida na Itália de forma não muito honesta. Já a irmã mais velha da noiva não teve a mesma coragem de desafiar convenções que seus irmãos e vive infeliz. Amal (Hiam Abbass) é uma mulher com hábitos moderninhos demais para os padrões da tradicional aldeia e acaba também desafiando o conservadorismo do marido Amin (Adnan Trabshi) ao querer voltar a estudar agora que suas filhas já são adolescentes. Mona é muito apegada a irmã e esta, por sua vez, tem a esperança de que a noiva tenha a vida que ela sonhava um dia ter. Bem, corajosa a moça é. Ela está prestes a concluir um casamento arranjado com seu primo Tallel (Derar Sliman) sem nem mesmo conhecê-lo pessoalmente. Ele é um ator de televisão residente da parte síria da região, portanto não pode ir até a noiva, esta que terá que se dirigir até a fronteira sob forte calor e ostentando seu pomposo vestido, mas o casamento lhe significa tanto, literalmente uma mudança de vida, que ela não se importa com os sacrifícios, ainda que esteja ciente de que após o enlace matrimonial ela será como uma propriedade do marido, não poderá mais voltar ao povoado em que vivia e consequentemente não verá mais sua família. É uma situação no mínimo inusitada. Uma família que vai receber um novo membro desconhecido e outra que vai de certa forma perder para sempre um ente querido. Cada uma vivendo em uma região separadas por grupos de soldados e o fantasma da burocracia que pode sabotar o casório. É explorando o misto de alegria, tristeza e medo que antecedem o casamento que o longa se apóia, além é claro dos inevitáveis conflitos gerados pelo reencontro da família da noiva. Com personagens verossímeis fica fácil a identificação com o longa.

É interessante observar a metáfora política que representa tal casamento. A união de Mona com Tallel é como se fosse um pequeno passo para se chegar a paz entre muçulmanos e judeus. Os noivos seriam como mártires dessa caminhada pela paz, mas eles não hasteiam bandeiras. Simplesmente estão cumprindo um compromisso acertado entre suas famílias, cada um visando seus próprios objetivos com essa ação. A premissa poderia sugerir uma comédia leve como tantas outras que investem na temática casamento e família, mas o contexto sociopolítico é essencial para elevar a obra a outro nível. Além do absurdo do contato entre as partes rivais só existir a distância e com a ajuda de megafones, algo já visto em outros títulos sobre a região como Sob o Céu do Líbano, as bodas acabam se transformando em uma situação constrangedora e tensa devido a problemas burocráticos israelenses e o orgulho sírio. Um caso irônico proposto pelo roteiro: uma união civil ameaçada pela separação gerada por conflitos políticos, étnicos e religiosos. Seria muito chato assistir um filme que enrolasse o espectador com uma noiva a espera de um simples carimbo para atravessar a fronteira e seguir seu destino, por isso o longa ganha certa movimentação graças ao elenco de coadjuvantes que ajuda a deflagrar outros ganchos narrativos apresentando mais aspectos da cultura local e até mesmo protagonizando situações de apelo e interesse universais como a incomunicabilidade tão comum entre membros de um mesmo clã. Além dos problemas familiares, chama a atenção também ver a que ponto extremo chega o conflito do casamento. Na fronteira além dos noivos cansados na companhia de seus entes também estão policiais que fazem a proteção do local e alguns exclusivamente deslocados para deter Hammed, funcionários do governo e até funcionários da ONU (Organização das Nações Unidas). Parece o samba do crioulo-doido? Mas Riklis sabia o que estava fazendo e não deixou pontas soltas. Sem fazer obrigatoriamente discursos panfletários quanto ao quadro que se encontra entre a Síria e Israel ou sobre os drusos, A Noiva Síria consegue de modo leve oferecer cultura e entretenimento sem esforço. Merece destaque o trabalho da atriz Clare Khouri que transmite com muita naturalidade ao espectador o turbilhão de sentimentos pelos quais sua personagem passa ao longo da trama: insegurança, alegria, medo, tristeza e humilhação se fundem com perfeição em sua composição afinal abordar o lugar que as mulheres ocupam nas culturas libanesa e israelense, sempre em segundo plano e submissas, talvez seja o grande saldo desta produção que mostra que o cinema feito em terras tão fatigadas por guerrilhas pode perfeitamente ser oferecido de modo mais descontraído, mas sem perder o tom crítico ou documental.

Drama - 97 min - 2004

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