NOTA 8,0 Longa dá uma reciclada no gênero thriller com novas dinâmica e narrativa, incluindo um protagonista enigmático |
Infelizmente hoje em dia muita gente leva em consideração os
efeitos especiais e sonoros na hora de escolher um filme, o que dá certa
vantagem para as produções de ação e a possibilidade de retornar aos holofotes
brucutus característicos dos anos 80 como Sylvester Stallone, e não é mais nem
preciso ir ao cinema para curtir imagens e sons inacreditáveis. Para os amantes
de produtos desse tipo certamente um enredo que fala sobre um sujeito
esquisitão que leva uma vida dupla se dividindo entre o trabalho como dublê em
filmes e uns bicos para o mundo da máfia deve soar como adrenalina pura ainda
mais quando nos deparamos com o titulo, Drive, assim mesmo sem traduções
literais ou estapafúrdias para o português. Porém, basta acompanhar a
introdução para que muitos comecem a chiar. Ryan Gosling vive o protagonista
cujo nome nunca é revelado, simplesmente ele é o motorista. Logo no início ele
está prestando serviços para uma dupla de ladrões que está em fuga após um
assalto. A perseguição clássica de mocinhos aos bandidos está em cena, mas
esqueça de qualquer barulho ensurdecedor, capotagens e frases idiotas ou
manjadas trocadas entre as partes envolvidas. O recado está dado. Apesar do
estilo ação hollywoodiana se fazer presente, aqui o conteúdo prevalece sobre o
tiroteio e o corre-corre e deve causar estranheza a longa apresentação dos
créditos iniciais ao som de uma música melosa e nostálgica em substituição as
tão tradicionais batidas do rock, hip hop ou som eletrônico pesado. Quem vencer
nos primeiros minutos a resistência quanto a esta estética visual e sonora
diferenciada, parabéns! Certamente estará pronto para acompanhar uma trama que
dá certa reciclada no gênero ação, mas que infelizmente em seus últimos atos
volta a investir em velhos clichês, mas sem deixar a narrativa ficar tediosa. Baseado
no livro homônimo de James Sallis, o roteiro de Hossein Amini, do drama de
época Asas do Amor, acompanha o cotidiano de um motorista que trabalha como
mecânico e dublê em produções de ação de Hollywood, mas nas horas vagas faz
alguns servicinhos sujos. Sempre muito calado e sem esboçar sorrisos, o rapaz
estranhamente acaba desenvolvendo uma amizade com Irene (Carey Mulligan), sua
vizinha que tem um filho pequeno. Eles passam a conviver cada vez mais próximos
como se formassem uma família, mas não demora para que Standard (Oscar Isaac),
o marido da moça, saia da prisão e queira retomar seu lugar de chefe do clã,
todavia ele ainda tem dívidas a serem acertadas com outros prisioneiros. Vendo
a situação difícil dos vizinhos, o motorista convence Standard a realizar um último
assalto, mas o golpe dá errado e agora todos eles correm risco de vida.
Estreando no cinema mais comercial e fora de sua terra
natal, o diretor dinamarquês Nicolas Winding Refn, premiado em Cannes por esta
obra, foi bastante habilidoso e demonstrou sensibilidade e objetividade para
conduzir a trama aparentemente simples, mas se analisarmos com atenção é um
tanto difícil contar uma história em que não há vilões no núcleo principal. É
curioso, mas apesar do protagonista ajudar criminosos, não conseguimos
enxergá-lo como um deles também. Talvez pelo mecanismo que rege suas ações
ilegais. Os bandidos têm exatos cinco minutos para invadirem o local que
desejam assaltar, roubarem o que podem e ainda conseguirem voltar para o carro.
Caso ultrapassem o tempo estipulado, o motorista vai embora sem culpa alguma e
deixa seus contratantes a mercê da sorte. Este foi mais um excepcional trabalho
de Gosling que em 2011 atuou em diversos filmes, colheu inúmeros elogios, mas o
Oscar deixou de escanteio. Neste caso, ele construiu um personagem de múltiplas
facetas. Misterioso, introspectivo, solitário, ardiloso, sensual, justiceiro, mau-caráter
e calculista. O ator conseguiu realizar uma mistura de diversas personalidades
em uma mesma personagem de forma homogênea e totalmente crível. Sua expressão
facial constantemente apática é usada como se fosse um escudo que resguarda um
verdadeiro turbilhão de sentimentos e emoções, uma máscara tão dura que não
deixa nem mesmo transparecer claramente o que ele sente por sua vizinha. Embora
não declare por meio de palavras ou gestos explícitos, fica no ar a atração que
o motorista sente por Irene, esta que corresponde o interesse da mesma forma.
Isso fica latente através de constantes momentos de silêncio e nos poucos
diálogos que travam. É uma maneira excêntrica de se conduzir a trama. Winding
ao mesmo tempo em que parece querer evitar o envolvimento do espectador com os
personagens também sugestiona que o elo deve se estabelecer no campo sensorial.
Quem assiste deve se sentir inserido na narrativa como se fosse um voyeur das
situações, alguém a espreita dos personagens seguindo seus passos, e nesse
sentido o uso da fotografia e a baixa luminosidade são elementos fundamentais
criando uma atmosfera bastante característica para o longa. Não fica claro em
que época a ação se passa, mas o fato é que as equipes técnicas conseguiram
gerar uma ambientação que transita entre os nostálgicos anos 80 e os dias
atuais, uma mistura do vintage com o moderno não apenas esteticamente, mas
também em sua trilha sonora. Através de planos e enquadramentos de câmera
estratégicos, o cineasta conseguiu captar imagens de uma cidade marcada pela
marginalidade e fragilidade, mas ao mesmo tempo brindou os espectadores com
sequências belíssimas e de difíceis realizações, um trabalho que também
dependeu muito de uma iluminação bem planejada principalmente por boa parte das
cenas serem noturnas ou em ambientes escuros.
Voltando a falar sobre os personagens, o papel de Gosling
jamais é apresentado como o antagonista, pelo contrário, mesmo demonstrando de
forma excêntrica um carinho acima do normal por Irene e seu filho, uma relação
quase platônica, ele se dispõe a ajudar o marido dela em um momento de
dificuldades, ainda que por meios ilícitos. Rotulá-lo como uma pessoa fria,
portanto, não cai bem. Muitos filmes já foram protagonizados por homens
corajosos e sisudos que vez ou outra soltavam uma frase de efeito e sempre se
safavam dos problemas como verdadeiros heróis, mas neste caso temos em cena um
anti-herói carismático e seu dilema é dividido com o espectador. Mais que criar
a expectativa se ele irá ou não se safar do último golpe, a grande questão aqui
é humana, é colocar a própria vontade em primeiro lugar ou abrir mão da
felicidade em detrimento do outro. Nem mesmo Standard conseguimos enxergar como
alguém do lado do mal, principalmente depois que ele ferido é encontrado pelo
filho e pede para que o garoto guarde segredo do que viu. Simplesmente o vemos
como uma vítima da sociedade que se antes da prisão não havia encontrado
oportunidades para uma vida digna, agora então suas chances diminuíram
drasticamente e um último roubo para saldar uma dívida seria apenas uma ilusão
de que a criminalidade o abandonaria. A banda ruim é representada na realidade
pelos atores Albert Brooks e Ron Perlman, respectivamente Bernie, o chefe do
motorista na oficina mecânica, e Nino, um homem cuja importância é revelada a
partir do tal crime que salvaria Standard, ambos com caráter discutível. Com
uma narrativa simples, eficiente e sem apelar para manjadas sequências de
produções de ação, este sem dúvidas é um produto atípico. É diversão
garantida, mas com conteúdo. Agrada aos fãs de adrenalina menos
tradicionalistas e também não deve decepcionar quem gosta de uma pitada de
drama para justificar os fatos. É quase silencioso, econômico inclusive nos
diálogos, porém, ainda assim causa certo barulho, principalmente quando uma
violência gráfica de dar inveja ao polêmico cineasta David Cronenberg é
inserida na trama, com direito a uma cabeça literalmente estourando. É a partir
da cena em que o suposto último crime de Standard está prestes a se concretizar
que Winding lança mão de clichês, investe mais em recurso sonoros e apresenta
sequências que destoam da primeira metade do longa, mas já é tarde demais para
dizer que isso estraga a produção. A essa altura quem já está fisgado pela
narrativa não a abandona e deve se divertir caçando as inúmeras referências a
títulos clássicos e diretores famosos, principalmente citações que nos remetem
à produção cinematográfica dos anos 70 e 80. Drive é um respiro bem-vindo para
o cinemão americano que diante da escassez de boas ideias tenta sobreviver
vendendo tecnologia aos montes, mas pouco cinema de verdade. Imagem pode
significar tudo, desde que carregue conteúdo em seus gráficos e nesse ponto esta
obra é bem servida guardando em cada fotograma algum significado, assim como em
seus momentos de silêncio que são usados como ferramenta dramática.
Suspense - 100 min - 2011
Suspense - 100 min - 2011
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