NOTA 2,0 Mescla de drama, suspense e ficção científica para no fundo contar uma história de amor soa bizarra e enfadonha |
Dogma 95 foi um movimento cinematográfico que não resistiu muito
tempo. Os jovens, criativos e sufocados cineastas que o fundaram tinham a
proposta de realizar um cinema mais realista e cru, abandonando praticamente
todos os artifícios cinematográficos em nome da arte pura. O resultado eram
filmes preocupados com o conteúdo e com estética semelhante a de filmes
caseiros, mas pouco a pouco apenas os conceitos estéticos rústicos poderiam ser
elogiados, pois as narrativas não conseguiam mais superar o impacto dos
primeiros filmes sob essas regras. O dinamarquês Thomas Vinterberg faz parte da
mesma turminha da qual despontou Lars Von Trier, mas mesmo com todo o sucesso
de Festa de Família ele jamais
alcançou o mesmo status do colega que logo se esqueceu dos conceitos de cinema
que defendia e ficou famoso com obras tão polêmicas quanto suas declarações e
atitudes em eventos. O segundo trabalho de Vinterberg rompe totalmente com o
movimento que o lançou, pois fica claro que é uma produção requintada e que
usou e abusou de tudo aquilo que antes era considerado apenas como firulas
(entenda-se como recursos técnicos) para escamotear a falta de conteúdo. Lançado quando o Dogma 95 já havia se tornado
um capítulo encerrado, “It’s All About Love” (tudo a respeito do amor) ganhou
no Brasil o oportunista título Dogma do Amor, um claro chamariz
para os cinéfilos alternativos, mas a produção queria arrebatar novas plateias,
ainda que a narrativa fosse estranha. Curiosamente, o filme não agradou a gregos
e nem a romanos. Simplesmente foi massacrada pela crítica especializada e nem
as plateias cults foram seduzidas. O descaso é totalmente justificável, mas não
exatamente pelo fato do diretor aderir ao cinema-espetáculo. A trama, escrita por ele mesmo, é o grande
calcanhar de Aquiles. Em 2021 o mundo está um verdadeiro caos. A falta de amor
e a solidão tornaram-se grandes problemas da humanidade e diariamente centenas
de pessoas em todos os cantos do mundo estão literalmente caindo mortas por
conta de um estranho problema no coração. Áreas que costumeiramente sofriam com
altas temperaturas, agora vivem sob temperaturas negativas e na TV os
noticiários informam que na Uganda pessoas estão morrendo por conta de
acidentes causados pelo estranho fenômeno de falha da gravidade que leva os
habitantes a flutuar. Em meio a estas situações bizarras, o escritor John
(Joaquin Phoenix) está vindo da Polônia para Nova York para reencontrar a
esposa, Elena (Claire Danes), uma patinadora artística de sucesso.
John é recepcionado no aeroporto por dois homens que vieram a pedido
de Elena que não pode vir devido aos seus intensos treinos para a apresentação
que fará a noite. É justamente o trabalho da esposa que acabou afastando o
casal. Eles não se veem a mais de um ano e isso levou o escritor a optar pelo
divórcio, assim o motivo da viagem é para que ela assine os papéis com os quais
já revelou estar em pleno acordo. O rapaz poderá ficar na cidade apenas até a
manhã do dia seguinte e será hospedado na casa de Michael (Douglas Henshall),
que em poucas horas será seu ex-cunhado. O relacionamento entre eles é dos
melhores, assim como com toda a família de Claire e a própria moça parece não
guardar nenhum tipo de ressentimento pela separação, no entanto, o que era para
ser uma rápida viagem acaba se tornando um pesadelo surreal. Elena tem um
comportamento estranho e confessa a John que precisa de ajuda para fugir, pois
não é feliz. Na realidade ela não tem mais vida pessoal, apenas profissional.
Sua rotina é treinar por muitas horas seguidas e ser dopada para no restante do
tempo dormir profundamente. Sua carreira é chefiada por seus familiares e um
inescrupuloso grupo empresarial que até lembra um típico clã de mafiosos. O
lema deles é enriquecer a todo custo, mas isso depende mais dos esforços de
Claire que já está chegando na idade limite para a patinação profissional e é a
fonte de renda de todos estes urubus. O casal decide deixar para trás a
separação, ao menos momentaneamente, e foge da cidade com planos de o mais
rápido possível saírem do país, mas acabam sendo descobertos e obrigados a
voltar para o hotel onde os empresários se reúnem. John então percebe que a
esposa está realmente nas mãos de uma facção criminosa e descobre os motivos
que levam o grupo a manter um controle tão rígido sobre cada passo dela, algo
além da imaginação até mesmo dos cinéfilos mais experientes. Fazendo parte do
complô agora que sabe de tudo, o escritor deverá compactuar com uma farsa para
proteger sua vida e que coloca a da companheira em risco, mas o amor que um dia
sentiram um pelo outro ressurge com força total e ele tem um plano para escapar
junto com Elena deste circo de horrores. Pelas indicações que vez ou outra são
dadas para nos lembrar do cenário caótico e futurista em que a trama se
desenvolve, fica claro que está história de amor segue rumos inusitados, mas a
mistura de drama romântico e ficção científica é difícil de engolir,
principalmente quando a obra assume definitivamente seu aspecto bizarro.
A trama ainda busca espaço para criar clima de suspense e dedica seu
arrastado final a deixar sua assinatura de filme-cabeça com direito a uma
narração em off do irmão do protagonista, Marciello, vivido por Sean Penn em
participação insignificante. Seu personagem tem umas três ou quatro cenas em
que aparece para dizer frases filosóficas que soam estranhas assim como a sua
presença na trama, um comissário de bordo que precisa se encher de remédios
para vencer o medo de alturas, mas quando está acima das nuvens não quer mais
voltar para o chão firme. Ele vê de uma posição privilegiada a superfície de
várias partes do globo congelando, mas longe da desumanização e anestesiado
tudo para ele é belo e tem a ver com o amor, uma forma desnecessária de
justificar o título original visto que John e Elena traduzem o sentido da frase
em uma sequência final poética e com mensagem universal, talvez a única que
preste em meio a tanta bizarrice. Vinterberg ficou em cima do muro entre a
decisão de fazer uma obra mais comercial ou seguir o estilo alternativo que o
consagrou e o resultado final é esquisito e enfadonho. Ficam claras as
intenções do diretor em falar da importância do amor na manutenção do mundo,
ainda mais com o auxílio da metáfora do resfriamento do globo em reflexo ao
comportamento egoísta das pessoas que se tornam cada vez mais frias, porém, era
mesmo necessário uma trama repleta de tantos excessos? Dogma do Amor poderia ao
menos ser razoável se o argumento fosse utilizado sob os preceitos antes
defendidos pelo cineasta, assim eliminando as sequências com pegada de ficção
científica que só servem para confundir. Mostrando que também teria capacidade
para lidar com iluminação, cenários, figurinos, edição e trilha sonora de
qualidade, tudo aquilo que dizia esconder a falta de conteúdo de um filme,
Vinterberg mordeu a própria língua. Com visual digno de produções
hollywoodianas, este romance realmente revela-se vazio por trás da plástica. Os
protagonistas são desinteressantes e os atores parecem atuar no piloto
automático, assim como o restante do elenco. Como as cenas são gravadas de
forma aleatória, provavelmente ninguém entendia quais eram as intenções da
produção, assim só fizeram o estritamente necessário com medo de errar o tom.
Nem mesmo quando o grande mistério em torno de Elena é revelado John,
teoricamente o mocinho, tem alguma atitude convincente. Até os responsáveis
pela edição devem ter estranhado o material e deixaram cenas soltas, como a
ausência de explicações para a naturalidade com que as pessoas reagiam a mortes
repentinas, como a mostrada na chegada de John a Nova York. Ah sim, a
humanidade no futuro é fria. Tão fria quanto o envolvimento do espectador com
esta bobagem travestida de filme-cabeça.
Drama - 104 min - 2003
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