NOTA 8,0 Longa aborda a decadência de uma tradicional família italiana paralelo ao drama da matriarca infeliz redescobrindo o que é viver |
Infelizmente temos a cultura de
assistir um filme apenas uma vez e levar a sério o ditado que diz “a primeira
impressão é a que fica”. Dessa forma, deixamos de apreciar filmes excepcionais,
mas que por vários motivos podem não revelar suas principais qualidades em um
primeiro momento. Podemos apreciar as atuações, a trama, a trilha sonora, a
direção de arte, as locações, mas é difícil encontrar um filme que reúna todos
esses elementos de forma uniforme e com qualidade. Provando que premiações são
puras ações de marketing, Um Sonho de Amor passou batido
nesses eventos, conquistando como prêmio de consolação uma indicação ao Oscar
de Melhor Figurino, uma injustiça feita a um trabalho que flerta com a moda
antiga de se fazer cinema, principalmente na Itália (cenário da trama), mas que
traz a tona temáticas relevantes e sempre atuais. O diretor Luca Guadagnino, de
100 Escovadas Antes de Dormir, tem
mais experiência na área de documentários, mas demonstra competência e
intimidade com o mundo ficcional. Ou melhor, ficção é modo de dizer já que este
drama está carregado de toques realistas. Na trama escrita pelo próprio
cineasta em parceria com Barbara Alberti, Ivan Controneo e Walter Fasano, somos
apresentados à família Recchi, aristocratas cujo poder e riqueza são notados
logo nas primeiras cenas passadas dentro do casarão do clã em Milão. Uma grande
festa está sendo preparada para comemorar o aniversário do patriarca Edoardo (Gabrielle
Ferzetti), dono de uma das maiores fábricas de tecidos da Itália. A ocasião
está sendo muito aguardada por todos os convidados, pois será revelado o nome
do sucessor dos negócios da família. Sua nora Emma (Tilda Swinton) está tão
envolvida com os ajustes finais do evento que até parece a governanta da casa,
misturando-se facilmente aos empregados. De origem russa, ela está casada há
muitos anos com Tancredi (Pippo Delbono), que está sendo preparado para ocupar
o lugar de chefão da empresa do pai, mas o relacionamento entre o casal parece
um tanto frio. Eles são pais de Edoardo (Flávio Parenti), que está prestes a
ficar noivo de Eva (Diane Fleri); Elisabetta (Alba Rohrwacher), que não está
certa se realmente ama o namorado, e Gianluca (Mattia Zaccaro), o filho caçula.
Durante o jantar, é anunciada a esperada nomeação de Tancredi para assumir a
empresa têxtil, mas seu pai ordena que as obrigações da presidência sejam
divididas com seu neto mais velho. Não por acaso o rapaz leva seu nome, o que
agrega aquela irresistível sensação de confiança e tradição à empresa.
Ironicamente, o sólido e
organizado mundo dos Recchi começa a sofrer rachaduras nesta mesma noite de
festa. Após o jantar, o jovem Edoardo recebe a visita de Antonio (Edoardo
Gabbriellini), um chef de cozinha que o havia vencido em uma corrida horas
antes e que inesperadamente vem lhe trazer um presente por conta da disputa
honesta que travaram, um gesto cordial em desuso, mas ainda muito apreciado por
aristocratas. O rapaz apresenta o novo amigo à mãe, mas ele educadamente recusa
o convite para entrar na casa nesta noite tão particular aos Recchi. Conforme o
tempo passa, a amizade entre os rapazes se fortalece e Antonio passa a ser o
responsável pelos jantares de negócios que a família realiza com certa
frequência, assim constantemente ele encontra com Emma com quem conversa
normalmente, sem pesar a diferença de idade ou de classe social. Ela fica
encantada e sensibilizada com o seu talento para a culinária, tanto que chega a
experimentar sensações que há tempos não sentia, se é que algum dia as vivenciou.
Quando junta certa quantia de dinheiro e com a sociedade de Edoardo, o
cozinheiro decide montar um restaurante na cidade em que vive, San Remo.
Elisabetta convida a mãe para fazer uma viagem para um local próximo e Emma não
pensa duas vezes antes de aceitar, afinal essa era a desculpa perfeita para se
aproximar um pouco mais do universo de Antonio e é do contato entre estes dois
personagens que o restante da narrativa se sustenta ou, em outras palavras,
passa a mostrar a decadência da aristocracia. A princípio o longa não deixa
claras suas intenções, mas Guadagnino não tem pressa alguma de desenvolver seu
enredo, arriscando inclusive trabalhar com dois temas principais paralelamente.
O primeiro fala sobre as relações sociais e corporativas atuais, onde um nome
tradicional pode não significar mais muita coisa. O outro aborda a dúvida entre
seguir uma vida monótona, porém, segura e respeitável, ou ceder ao desejo de
viver uma paixão avassaladora, um amor que pode ser passageiro, mas cuja
intensidade não poderia ser vivida em cerca de duas décadas de união estável.
Com foco em um ou outro, o fato é que ambos são temas de apelos universais e
contemporâneos. Já faz algum tempo que as sociedades em geral estão vendo a
aristocracia ruir e emergir uma nova classe social baseada no poder aquisitivo,
mas praticamente desprovida de cultura. Tancredi, ao assumir os negócios do
clã, percebe que a economia mudou e que há riscos do império que seu pai
construiu ruir, o que pode também significar o fim do prestígio dos Recchi. Um
investidor árabe surge e Tancredi está disposto a negociar a venda da empresa.
Preservando o nome, a posição social de seus fundadores continuaria intacta.
Com tal ideia, ele acaba batendo de frente com os interesses do primogênito que
não vê com bons olhos negociar o sonho da vida de seu avô, preferindo arriscar
tocar a tecelagem até quando for possível. Apesar de interessante, o entrecho
infelizmente soa maçante, mas faz uma crítica construtiva em relação ao ter e o
ser.
A segunda trama paralela,
contudo, é a que domina as atenções, principalmente pela entrega de Tilda
Swinton a sua personagem que lhe exigiu pleno domínio do idioma italiano e
arriscar alguns diálogos em russo. Ela se envolveu tanto com a produção que
acabou sendo creditada também como produtora da fita. Emma conheceu o marido
quando ele fazia uma visita a negócios na Rússia, mas embora muito dedicada à
família, ela nunca se sentiu realmente parte do clã, certamente porque os
sogros preferiam uma nora italiana para agregar ainda mais prestígio ao
tradicional nome Recchi. Os anos foram passando e ela se acostumou com um
casamento de aparências e respeito mútuo. Até as alianças do casal ficam
guardadas e só são usadas em eventos sociais. Abdicando até mesmo de seu nome
de batismo que nem recorda mais, a sensação de isolamento desta mulher é
amplificada pela magnitude do casarão em que vive. Entre ambientes e corredores
amplos e com altura palaciana, Emma parece uma formiguinha de poucas palavras,
mas onipresente em praticamente todos os cantos e que se desdobra para atender
aos caprichos da família. O pouco que ainda guarda da cultura russa só consegue
compartilhar com o filho mais velho que parece ser o único a lhe dar realmente
atenção. Contudo, também existe um momento em que Emma se aproxima da filha.
Elisabetta confessa à mãe que está apaixonada por uma garota. No início a mãe
não compreende muito bem, mas respeita esse sentimento, contudo, ao ver fotos
da filha feliz ao lado da amada, ela passa a rever seus conceitos. Seguindo as
mudanças do mundo, a jovem na prática não tem compromisso algum em seguir a
rígida moral dos Recchi, é livre para seguir o caminho que quiser. Tardiamente
a submissa mulher resolve criar coragem para romper as barreiras daquele mundo
preocupado com status social e perpetuação do nome da família com o qual nunca
se identificou. Ela omitiu sua real personalidade para tentar se adequar, mas
os tempos agora são outros e se ela ainda está viva não tem porque se submeter
a infelicidade e assim ela decide se aproximar de Antonio. É curioso que
inicialmente algumas situações e diálogos entre o cozinheiro e Edoardo sugerem
que a amizade entre eles pode ganhar rumos mais íntimos, mas pouco a pouco tal
expectativa vai se esvaindo, afinal já existe uma subtrama homossexual no
enredo. O relacionamento com Emma envolve o rapaz de tal forma que ele também
não teria chances de pensar em outro alguém, mas será que ela quer viver apenas
uma aventura ou terá coragem de jogar tudo para o alto e trilhar um novo
caminho? Com fotografia, cenários, locações e figurinos que nos fazem pensar
por vezes estar assistindo a um clássico da Era de Ouro do cinema Italiano, Um
Sonho de Amor é uma obra que pode não cativar em uma primeira exibição,
talvez nem na segunda, mas vale a pena insistir. Cada vez que você assiste
encontra um detalhe que deixou passar e fica ainda mais hipnotizado pela
protagonista, cujo padrão de beleza exótico só contribui para a construção de
sua personalidade, uma mulher aprisionada pelo passado, mas inclinada a se
libertar para o futuro.
Drama - 120 min - 2010
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