NOTA 9,0 Clássico conto infantil salvou as finanças da Disney em tempos de crise e até hoje emociona com sua delicadeza |
Não tem mais jeito. A cada ano
que passa menos espaço as animações tradicionais encontram no mercado de
exibição, sendo assim tais produções sobrevivem através dos lucros com locadoras
e varejos, mas acabaram se tornando obras restritas a plateias de crianças bem
pequenas ou de adultos nostálgicos. Os desenhos mais moderninhos são bacanas,
divertem a todas as idades e a maioria está repleta de críticas ou sarcasmos
implícitos, mas já faz algum tempo que esses filmes estão se tornando
repetitivos ou até mesmo com histórias fracas. Nestas horas dá até saudades da
simplicidade dos traços e da ingenuidade das narrativas dos longas-metragens
animados antigos, corrente em que obviamente o Sr. Walt Disney e sua equipe de
desenhistas e roteiristas se destacavam. Cinderela é uma opção muito
bem-vinda para sair da rotina e comprovar que a genialidade destes criadores é
imortal. Embora o conto da gata borralheira seja super conhecido e demasiadamente
açucarado, o estilo antigo de fazer animação é o grande chamariz no caso, mas
não é só isso. Além dos traços suaves e os tons aquarelados, ainda temos uma trama
envolvente e a convidativa trilha sonora, enfim tudo aqui vale a pena. A
história original já sofreu inúmeras modificações com o passar dos anos em suas
diversas adaptações para o cinema, teatro, televisão e até na própria
literatura. Embora a versão dos famosos Irmãos Grimm seja levada em conta como
o texto original, o visionário empresário Disney deu sinal verde para a
produção deste longa animado baseando-se no livro homônimo de Charles Perrault.
Escritor de origem francesa, ele também foi o autor das adaptações mais
populares de “A Bela Adormecida” e “Chapeuzinho Vermelho”. Com a direção de Clyde
Gernimi, Hamilton Luske e Wilfred Jackson, o longa narra a história da bela e
gentil Cinderela, uma jovem que perdeu o pai muito cedo e foi criada por sua
madrasta, Lady Tremaine, em companhia de suas duas meias-irmãs. Obrigada a
fazer todos os serviços domésticos da casa, a moça nunca se sentiu parte desta
família e seus únicos amigos são alguns animaizinhos que a rodeiam, como alguns
ratinhos. São justamente eles que ajudarão Cinderela a realizar um grande
sonho: ir ao baile promovido pelo príncipe que deseja encontrar sua futura
esposa. A madrasta faz de tudo para evitar que a enteada compareça ao baile,
pois quer que uma de suas filhas legítimas conquiste o rico anfitrião, mas
quando menos espera a moça esnobada recebe a visita da bondosa Fada Madrinha
que lhe arruma um belo vestido de festa, transforma os ratinhos em cavalos e
cocheiros para conduzir a carruagem feita a partir de uma abóbora e, por fim,
oferece a ela um par de sapatos de cristal. Porém, toda essa magia só dura até
o relógio soar a meia-noite, o que obriga Cinderela a sair correndo no melhor
da festa, quando finalmente conseguiu se aproximar do príncipe. O rapaz não
sabe seu nome e nem onde ela mora, tendo como única pista o sapato que ela
deixa cair na escadaria do palácio.
Bem, esmiuçar o enredo criado a
partir do talento de uma equipe formada por quase dez roteiristas é até desnecessário
afinal de contas tal história é conhecida até de trás para frente por
praticamente todo e qualquer ser humano esteja ele em qualquer parte do mundo, mas
realmente é irresistível relembrar a magia deste desenho que se tornou um marco
da História da sétima arte e da própria trajetória da produtora Disney.
Contudo, muitos afirmavam na época de seu lançamento que este projeto acabaria
levando a empresa à falência, mas ocorreu justamente o contrário às
expectativas pessimistas. Naqueles tempos a companhia passava por momentos de
dificuldades devido ao fracasso de outras produções que hoje são consideradas
clássicas. Não que elas fossem ruins, pelo contrário, o pacote incluía, por
exemplo, Pinóquio e Bambi, mas o momento não era convidativo
para o entretenimento. Na década de 1940, boa parte dela marcada pela Segunda
Guerra Mundial, as pessoas estavam sofrendo com as atrocidades do conflito e
não pensavam em ir ao cinema em busca de diversão, aliás, até em termos
financeiros tal lazer ficaria inviável. Desde 1942 o estúdio estava se
dedicando a produção de curtas e médias-metragens animados que poderiam estar
ligados pela temática ou não, mas eram exibidos em conjuntos cujos tempos de
duração se aproximariam ao de um filme comum. Essa era a maneira encontrada
para arrecadar dinheiro até que a situação se normalizasse. Assim, o conto da
gata borralheira começou a ganhar forma modestamente em termos financeiros, mas
com dedicação e capricho dignos de superprodução. Para não desperdiçar
dinheiro, praticamente todo o filme foi confeccionado em cima de storyboards, desenhos
no papel que esboçam as cenas a serem realizadas, e a partir de modelos vivos,
atores que se dispuseram a interpretar as sequências para facilitar o trabalho
dos animadores. O resultado final deveria ser conhecido um ano após a estreia
de Alice no País das Maravilhas,
projeto conduzido paralelamente e que o Sr. Disney considerava ideal para
retomar a produção de animações longas em grande estilo, mas foi convencido por
seu irmão Roy que o conto da Cinderela deveria ser lançado antes, pois tinha um
apelo popular maior e que por sua estrutura poderia ter repercussão semelhante
a de Branca de Neve e os Sete Anões,
até então o projeto mais bem sucedido financeiramente da casa. Essa era a
chance do estúdio recuperar seu prestígio após oito anos sem lançar uma
animação em longa-metragem e encher seus cofres, e assim aconteceu. O sucesso
foi tanto que o longa acabou dando um gás à empresa e o chefão Disney voltou a
sentir vontade de investir em produções mais ambiciosas. Pelo que este trabalho
representou na trajetória Disney, sua salvação, não é a toa que o castelo do
filme foi escolhido para ser o grande símbolo e centro das atenções do parque
da empresa, a Disneylândia, que seria inaugurado alguns anos mais tarde.
Embora seja um filme “menor” da
grife Disney, já faz tempo que esta versão da romântica história da gata
borralheira é considerada um clássico entre populares e especialistas, ainda
que hoje em dia, como já dito, possa ter dificuldades para entreter as novas
gerações acostumadas a adrenalina e a inventividade dos desenhos moderninhos.
Todavia, continua sendo aquela lembrança que os pais ingênua ou nostalgicamente
querem compartilhar com os filhos e é ideal para alimentar a infância das
menininhas que infelizmente cada vez amadurecem mais cedo e o sonho de
encontrar seu príncipe encantado deixa de ser uma fantasia para se tornar uma
necessidade praticamente imposta pelas sociedades que ao mesmo tempo em que
condenam também parecem aplaudir a precocidade de suas crianças. Porém, isso
são outros quinhentos, mas falando em príncipe é importante observar que tal
figura tem uma importância inexpressiva nesta trama. Algumas sequências
previstas envolvendo-o foram cortadas, como seu reencontro com a dona do
sapatinho de cristal, o que culminou em um final apressado e de pouca emoção. Por
outro lado, como uma obra com essência legitimamente feminina, percebe-se o
cuidado com na construção visual das mulheres. A madrasta com seu corpo esguio
e olhos grandes e diabólicos, suas filhas com corpos mais rechonchudos, andar
desengonçado e feições pouco agradáveis, a fada gordinha e com rosto simpático
tal qual uma vovozinha e a sofrida protagonista com seu perfil angelical,
olhos, pele e cabelos claros como um anjo de candura. Também vale destacar os
bichinhos que acompanham a trajetória da pobre moça. A inserção deles na trama
foi estratégica já que a saga de Cinderela não era suficiente para compor um
longa-metragem, mas tal ideia foi completamente bem encaixada na proposta
fantasiosa. São estas criaturinhas que adicionam certa dose de humor, mas um
deles em específico, o gato Lúcifer, por causa de seu nome e caráter chama a
atenção de muitos até hoje que consideram tal escolha um equívoco dentro de uma
obra voltada ao público infantil e com tom tão leve, mas nada que desqualifique
o mínimo possível Cinderela que além de todas as suas qualidades facilmente
perceptíveis e sua já citada importância histórica também tem o mérito de ser o
primeiro longa Disney a ter sua trilha sonora comercializada, algo impulsionado
pelo sucesso da singela canção “Bibidi Bobidi Boo” que acompanha a
transformação da moça pobre em uma bela dama. Em seu histórico ainda constam
três indicações ao Oscar, o Urso de Ouro de Melhor Musical no Festival de
Berlim e um prêmio especial no Festival de Veneza. É muito bom poder ainda hoje
conferir o colorido e os traços delicados e precisos de uma animação datada de
uma época em que não era apenas o dinheiro que falava mais alto, mas também era
levado muito em consideração o respeito à sétima arte. A emoção deste clássico
felizmente continua até hoje conquistando novas gerações e alimentando a
nostalgia dos mais velhos. O mais importante de tudo isso é lembrar que os
sonhos se realizam e hoje em dia precisamos muito recuperar esta esperança,
principalmente nas crianças. Em tempo: com animação mais simplória foram
lançadas tardiamente duas sequências deste clássico, Cinderela 2 – Os Sonhos se Realizam e Cinderela 3 – Uma Aventura no Tempo, ambas longe do encantamento do
original, mas que servem para entreter as meninas aficionadas por histórias de
princesas.
Animação - 74 min - 1950
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