NOTA 9,0 Clint Eastwood comanda drama visceral que mexe com o emocional através de diálogos e interpretações impactantes |
Um filme que trabalha com temas espinhosos como assassinato,
pedofilia e traição e que deseja manter a tensão em alta do início ao fim
precisa obrigatoriamente conter tiroteios, sangue, cenas fortes, muito palavrão
e quem sabe até o ato corajoso de colocar um ator-mirim para dar mais
credibilidade ao assunto do abuso sexual infantil. Bem, essa é a receita básica
dos diretores que se aventuram no mundo do suspense, mas quem tem um currículo
repleto de sucessos com certeza procura de todas as formas fugir do lugar comum
e surpreender às avessas. É investindo em uma excepcional mescla dos gêneros
drama e policial que Clint Eastwood construiu Sobre Meninos e Lobos, um filme
capaz de deixar qualquer um com um nó na garganta sem precisar se chocar com
imagens, mas sim embarcando em uma história forte e realista conduzida por um
elenco competente. Lançado em uma época em que o cinema estava no auge da
invasão de magos, duendes e outras criaturas fantásticas, obviamente este
trabalho não fez fortuna e até hoje muitos não tiveram coragem em assisti-lo.
Não é a toa que a carga pesada de sentimentos contida no enredo seja a grande
marca desta obra, agindo de forma negativa e ao mesmo tempo positiva para a
vida útil da mesma. De qualquer jeito, este é um daqueles títulos que ficam martelando
em nossa cabeça até que arriscamos a sobreviver a esta imersão triste e
angustiante proporcionada por um filme reflexivo e relativamente de difícil
digestão. A história começa em Boston, nos EUA, em meados dos anos
70 quando certo dia três crianças foram flagradas em meio a uma travessura por
dois homens que se apresentaram como policiais. Um deles foi levado pela dupla
sem que os outros interviessem por ele. O problema é que esse passeio forçado
não era um castigo até que um dos responsáveis pelo garoto fosse buscá-lo, mas
sim um sequestro no qual a vítima foi abusada sexualmente por vários dias.
Cerca de três décadas mais tarde o destino acaba por unir os três jovens que
agora são chefes de família e que há anos não mantinham contato próximo, apenas
cumprimentos à distância. Katie (Emmy Rossum), a filha de Jimmy Markum (Sean
Penn), está desaparecida e existem suspeitas de que ela pode ser a jovem
encontrada morta em um barranco. Quem comanda as investigações é Sean Devine
(Kevin Bacon), um dos meninos que escapou do abuso, que pouco a pouco chega a
evidências que o levam a suspeitar do antigo amigo Dave Boyle (Tim Robbins), um
homem amargurado que jamais se recuperou do trauma de infância. Portanto, mais
um fato doloroso marcará a vida destes três homens que terão que enfrentar o
passado para encarar o presente com maturidade, contudo, não é apenas Boyle que
leva uma vida suspeita. Markum é um comerciante que tenta levar uma vida
normal, mas tem um passado criminoso, ainda não está totalmente livre destas
amarras e parece disposto a fazer justiça com as próprias mãos.
A partir deste reencontro forçado pelo destino várias
situações começam a surgir para revelar um pouco mais sobre a personalidade e a
vida de cada um destes homens e o espectador a essa altura já está fisgado e
curioso para saber como a trama irá se desenrolar, principalmente porque
algumas coisas ficam bem claras para o espectador bem antes do final, mas para
os envolvidos na trama não. A relação entre os três ex-amigos exala desconfiança
e raiva, mas talvez em suas atitudes, por mais controversas que possam parecer,
pode ser que o amor e o desejo de justiça as motivem. Ficamos então na tensão
de sabermos a verdade sobre o caso da morte de Katie, mas nada podemos fazer a
não ser acompanhar os caminhos tortuosos que os personagens seguirão até o
desfecho que, diga-se de passagem, seria bem melhor se fosse encurtado. Não
cabe revelar como tudo termina, mas digamos que Eastwood perdeu a chance de
fechar com chave de ouro uma obra excepcional, de forma a deixar para o
espectador tirar a conclusão definitiva sobre o futuro dos personagens.
Completando o elenco temos Laurence Fishburne como outro policial que participa
das investigações e Marcia Gay Harden e Laura Linney dando vida a Celeste e Annabeth,
respectivamente as esposas de Boyle e Markum. Devine também é casado, mas
durante todo o longa ele sofre com o abandono da mulher, um gancho pouco
explorado pelo enredo. Eastwood, como bom ator que é, sabe bem o quanto é
infeliz um intérprete que é mal aproveitado e por isso ele distribuiu entre
todo o elenco personagens fortes e com importância, assim as presenças
femininas não são meros enfeites em um longa que poderia exalar testosterona e
descambar para o velho clichê das perseguições e tiroteios para tudo quanto é
lado. Celeste se destaca graças ao conflito que vive com o marido, o que lhe
gera dúvidas, angustias e insatisfação com o casamento. Já Annabeth é uma
mulher que aparentemente é apática e não tem grandes momentos, o que talvez
levou o diretor a dar a tal esticadinha no final para garantir uma sequência
digna à personagem e que nos faz entender sua importância na vida de Markum. Se
as mulheres estão aqui para dar um “respiro” à obra, não há como negar que é na
ala masculina que o bicho pega e onde os diálogos mais arrepiantes se
encontram. Penn precisou trabalhar com diversas nuances para transformar seu
personagem crível. Em sua interpretação está uma das grandes surpresas da
trama. Inicialmente ele parece um desesperado pai de família sofrendo com a
morte de um dos filhos, mas quando descobrimos o seu passado criminal aliado a
seu comportamento já começamos a ter dúvidas a respeito de sua redenção.
Tão bom quanto Penn está Robbins como um adulto perturbado
pelas lembranças tristes da infância que ora nos faz dividir sua amargura e ora
nos faz sentir repulsa conforme algumas dúvidas vão sendo levantadas a respeito
de suas atividades na noite do assassinato de Katie. Os dois atores estão
estupendos e só vendo suas atuações para compreender porque suas inscrições a
prêmios foram classificadas como ator principal para Penn e coadjuvante para
Robbins, uma tática boa do estúdio que apostou no talento de dois grandes. Se
houvesse duelo entre os dois em uma mesma categoria certamente estariam sendo
feitas grandes injustiças, afinal um deles sairia das festas de mãos vazias.
Quem ficou de fora da badalação foi Bacon que talvez nunca tenha sido
reconhecido como um bom profissional, mas não por falta de talento e sim por escolher
ou ser obrigado a aceitar roteiros tolos. Talvez por viver o investigador do
caso sem ter a tira-colo um segundo conflito bem trabalhado, seu papel pode
parecer diminuto perto dos companheiros de elenco, mas ele o interpreta com
competência. O roteirista Brian Helgeland, do elogiado L. A. –
Cidade Proibida, conduziu muito bem a adaptação do livro “Mystic River”,
escrito por Dennis Lhane, de modo que o espectador que gosta realmente de um
bom filme não conseguirá desgrudar os olhos da tela, mesmo quando
antecipadamente já desata por conta própria alguns dos nós da trama. O grande
tema deste trabalho é fazer uma crítica à banalização da violência, seja pela
pedofilia, assassinatos ou, a pior de todas, recorrer a um ato criminoso para
fazer justiça com as próprias mãos, ou seja, um círculo vicioso no qual o
“justiceiro” é tão torpe quanto o próprio algoz. Em tempos em que a sociedade
está sem parâmetros de valores morais ou você coloca uma pedra em cima de um
assunto doloroso ou passará a nutrir um mal dentro de si mesmo com qual
dificilmente alguém sabe lidar de maneira pacífica. Sobre Meninos e Lobos fala
da explosão destes sentimentos negativos, seja com uma arma em punho ou
simplesmente através de palavras, e como tais ações podem machucar amigos,
parentes, desconhecidos e, principalmente, ao próprio autor do crime. Tingindo
seu trabalho de tons azulados e acinzentados, reforçando a melancolia presente
na produção e que atinge em cheio ao público, Eastwood provou mais uma vez não
ter medo de ser criticado e presenteou o mundo com uma obra visceral onde não
há vilões e mocinhos, tampouco o bem e o mal, mas sim personagens e situações
críveis que retratam um pouco da vulnerabilidade a que estamos expostos. Final
feliz aqui? Pode até existir, mas tudo dependerá do ponto de vista.
Vencedor do Oscar de ator (Sean Penn) e ator coadjuvante (Tim Robbins)
Vencedor do Oscar de ator (Sean Penn) e ator coadjuvante (Tim Robbins)
Drama - 137 min - 2003
Um comentário:
Excelente filme mesmo esse aí.
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