NOTA 9,0 Sem apelar para clichês, longa se sustenta em cima de situações corriqueiras engrandecidas por interpretações emotivas e sinceras |
Filho de peixe, peixinho é. Tal
ditado popular cai como uma luva para muitos profissionais que passaram aos
herdeiros o talento e o amor pelas carreiras que os consagraram. No meio
artístico isso é muito comum e Sofia Coppola não nega o provérbio. Filha do
cultuado Francis Ford Coppola, o responsável pelos três filmes da série O Poderoso Chefão, ela até tentou fugir
um pouco da sombra do pai, mas não conseguiu se desgarrar totalmente. Ela arriscou
a carreira de atriz fazendo seu debout no último filme da famosa trilogia do
papai, mas foi extremamente criticada e por anos seu nome sumiu da mídia, até
que em 1999 ele voltou a ser destacado com sua elogiada estreia como diretora
em As Virgens Suicidas. Poderia ser
apenas um golpe de sorte de uma mulher que teria que ralar muito para ser
respeitada no meio cinematográfico, mas seu segundo projeto, Encontros
e Desencontros, veio para provar que talento e vocação estão em seu
sangue. Neste trabalho ela mostra que o amadurecimento e a cautela foram
essenciais já que quatro anos separam os dois filmes. Neste tempo que ficou em
off, Sofia deve ter passado horas diárias refletindo sobre sentimentos e
contrastes, assim esta obra não nasceu hermética a um gênero específico. A
vida, as pessoas, o mundo são feitos de diferenças e as variações podem
acontecer em um estalar de dedos e este roteiro, escrito por ela própria, tem
um pouco de tudo. Drama, romance e um sutil humor se misturam e até um leve
suspense pode ser levado em consideração visto que os protagonistas se
encontram em um país completamente diferente e não sabem o que os espera. Bob
Harris (Bill Murray) é um ex-astro do cinema americano que está em Tóquio para
fazer um comercial de uísque aproveitando os últimos suspiros de sua carreira.
Frustrado com os rumos da sua vida profissional e ainda tendo que lidar com um
casamento em crise, mesmo assim ele é dotado de senso de humor. No mesmo hotel
em que está hospedado ele conhece Charlotte (Scarlett Johansson), também
norte-americana e que está acompanhando John (Giovanni Ribisi), seu marido, um
fotógrafo que está viajando a trabalho e a deixa sozinha o tempo todo, assim
ela está deprimida. O fuso horário diferenciado acaba fazendo com que os dois
sofram de insônia e eles se encontram no bar do hotel por acaso e imediatamente
surge uma empatia mútua, mas engana-se quem pensa que a partir de então uma
previsível história de amor será desenvolvida.
Sofia segue caminhos simples, mas
originais e inesperados para uma obra catalogada para fins comerciais como uma
comédia romântica. Harris e Charlotte mal conversam em meio a situações
triviais e sem nada de especial, mas se entendem através de gestos e olhares e
conseguem envolver de alguma forma mágica o espectador que se sente onipresente
em todas as cenas. Não poderia ser diferente. Este é um filme de ator, ou seja,
o roteiro é simples e eficiente, mas são as interpretações que o enriquecerão,
assim a cineasta demonstrou ter sensibilidade para escolher os tipos ideias
para viver os protagonistas que deveriam causar empatia imediata com o
espectador, caso contrário o longa seria fracassado em seus propósitos de
contar uma história sobre duas pessoas em busca de suas próprias identidades
que perderam por motivos diversos. Em comum, eles têm apenas os fatos de
estarem insatisfeitos com seus casamentos e de estarem em uma cidade completamente
estranha. Quem já teve a oportunidade de viajar para algum país com costumes,
alimentação e idiomas alheios a sua cultura certamente poderá se identificar
com algumas cenas, mas é bom ressaltar que a obra de forma alguma quer
ridicularizar ou insultar o Japão, pelo contrário, em meio a tradição mesclada
a traços de ocidentalização a terra do sol nascente, pela ótica de Sofia,
parece ferver 24 horas por dia e seu filme nos desperta um grande fascínio para
conhecê-la mais detalhadamente. A capital nipônica é captada destacando toda a
beleza presente em seu cotidiano, com seus diversos arranha-céus ostentando
publicidades com esfuziantes luzes de neon que chamam a atenção seja dia ou
noite, mas a pressa do dia-a-dia proíbe as pessoas de admirarem tais paisagens
e só mesmo um olhar estrangeiro para se deslumbrar com elas. A cineasta propõe um
rápido tour em companhia de seus personagens que pouco a pouco vão desnudando
seus sentimentos e escrevendo uma breve história romântica baseada no
companheirismo e confiança, sem amor carnal. É essa a grande mensagem da obra.
Revelar o quanto uma amizade verdadeira pode ser importante, ainda mais quando
estamos assolados pela solidão. Uma palavra, olhar ou gesto de carinho é o
bastante para nos sentirmos vivos, ter a noção de que alguém lhe notou em meio
a multidão. Aí percebemos mais uma vez a importância da construção dos
personagens, não necessariamente as situações que eles vivem. A partir do
momento em que conhecemos suas angústias, vontades e perfis, é muito fácil
embarcar nessa atípica história em que episódios corriqueiros acabam ganhando
dimensões inimagináveis graças a relação estabelecida entre o espectador e quem
está em cena.
Trocar experiências e
compartilhar anseios e frustrações, essa é a base de uma boa amizade que pode demorar
anos para se solidificar, no entanto, Harris e Charlotte passam apenas alguns
dias juntos e mesmo assim parecem ser amigos de longa data. Isso é graças a
surpreendente química de seus intérpretes que conseguem não dar brecha para
especulações quanto a diferença de idade afinal a oposição é justamente a
inspiração do longa. Ele encontrou na moça o frescor da juventude e ela, por
sua vez, absorveu a maturidade dele para aprender a lidar com seus problemas.
Ambos perdidos em suas vidas pessoais e sem saber o que fazer para passar o
tempo em uma cidade onde não compreendem uma palavra coincidentemente eles se
encontraram, algo que não precisaria acontecer precisamente em uma cidade
japonesa. Poderia acontecer até mesmo no Brasil ou no próprio EUA. Contudo, é
inegável que a escolha do Japão foi certeira para justificar o título original,
“Lost in Translation”, algo como “perdido na tradução”. Propositalmente, as
falas no idioma local não são legendadas para dar ao expectador a mesma sensação
vivenciadas pelos protagonistas. Poderiam até estar sendo ofendidos, mas nem
tomariam conhecimento. O melhor é que tais sequências são extremamente naturais
já que os atores tiveram liberdade para improvisar e suas reações à cultura
nipônica são verdadeiras e comuns a qualquer pessoa alheia, assim os boatos de
que o longa usa a ironia como ofensa aos japoneses não tem fundamentos válidos,
assim como também não é certo afirmar que a obra é um pastiche arrastado e sem
conteúdo. Sendo curto e grosso, não curte cenas contemplativas, não tem
paciência para desenvolvimento de personagens e tampouco para refletir após a
conclusão, não perca seu tempo. Quanto as atuações, Murray parece que teve um
papel construído meticulosamente para se encaixar a seu perfil, quase uma
criação autobiográfica. Assim como Harris, Murray teve seu período de glória e
depois ficou muitos anos atuando em produções de baixa repercussão, sendo
redescoberto pelo cinema independente americano. Suas expressões faciais e
olhares revelam todos os sentimentos que o roteiro lhe nega em diálogos. Boa
parte do tempo caladão e observador, o personagem por pouco não deixa a
companheira em segundo plano na história, mas Scarlett, ex-atriz mirim que
finalmente vinha a ser conhecida pelo grande público, posiciona-se com
segurança em cena para transparecer a alma melancólica de Charlotte que poderia
até ser vista como um alter-ego de Sofia. Encontros e Desencontros é inspirado
em uma breve passagem da vida da diretora dos tempos que ela era casada com o
também cineasta Spike Jonze e precisou acompanhá-lo a uma viagem de trabalho ao
Japão. As prováveis horas de contemplação do país da janela do quarto do hotel
ou os solitários passeios renderam muito para a moça que teve a honra de ser
uma das poucas mulheres a serem indicadas ao Oscar de direção.
Vencedor do Oscar de roteiro original
Vencedor do Oscar de roteiro original
Comédia romântica - 105 min - 2003
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