sexta-feira, 17 de fevereiro de 2017

LADRÃO DE SONHOS

NOTA 7,5

Bom argumento é desperdiçado
em produção cujo roteiro foi
construído em cima de belas,
oníricas e originais imagens
Cada país pode e deve produzir os mais variados estilos de filmes, mas sem querer um ou mais gêneros acabam se tornando a marca registrada do cinema local. Por exemplo, a cinematografia francesa é muito lembrada pelos romances com toques de sensualidade ou dramas que carregam na emoção ou na contemplação do silencio no lugar dos diálogos, mas garimpando sempre é possível encontrar algum tesouro esquecido nesta filmografia. Uma das obras mais destacadas dos últimos tempos do cinema francês foi O Fabuloso Destino de Amélie Poulain, uma obra que rompe com estilos narrativos convencionais, além de apresentar inovações no processo de edição e o uso de muitas cores em seus cenários e paisagens. Dirigido por Jean-Pierre Jeunet, certamente o cineasta trouxe para este seu primeiro trabalho solo muito do que aprendeu trabalhando ao lado do diretor Marc Caro. Juntos eles revolucionaram a maneira de fazer filmes na França trabalhando com enredos e visuais criativos capazes de deixar até o excêntrico Tim Burton com inveja. Uma prova disso está em Ladrão de Sonhos, uma fábula infanto-juvenil com toques sombrios, mas ainda assim um tanto onírica. Este tipo de cinema que capta a atenção do espectador muito pelo visual se tornaria bastante popular nos anos seguintes, inclusive em solo americano, mas realmente fica difícil definir se o estilo de Burton influenciou os cineastas franceses neste caso ou se foram eles que inspiraram o gótico diretor em seus projetos futuros, lembrando que anos antes Caro e Jeunet já haviam chamado a atenção com a comédia de humor negro Delicatessen. Como sempre dito neste blog, imagem não é tudo e um bom enredo é preciso para sustentar uma produção. Você já imaginou o quanto desgastante e sem motivação seria a vida se não pudéssemos sonhar? É partindo dessa hipótese fantasiosa que os diretores em parceria com Gilles Adrien desenvolveram o roteiro cujo foco central é o sofrimento pelo qual passa Krank (Daniel Emilfork), um homem que envelheceu prematuramente e a cada dia sua própria face deixa transparecer que seu quadro só vem se agravando. Tal distúrbio ocorre pela incapacidade que ele tem de sonhar e, na tentativa de achar uma solução definitiva ou ao menos frear a rápida passagem de sua vida que não acompanha o tempo real, ele passa a sequestrar crianças para roubar seus sonhos através de uma invenção que criou.

Miette (Judith Vittet), uma menina criada nas ruas com inteligência muito superior ao que a maioria de sua idade possui, tenta barrar este plano com a ajuda do caçador de baleias One (Ron Perlman, muito antes de Hellboy), cujo irmão adotivo e bem mais novo, o esfomeado Denree (Joseph Lucien), foi um dos sequestrados. No entanto, estes dois corajosos de personalidades completamente opostas, ele um grandalhão com alma de criança enquanto ela é uma garotinha que amadureceu antes do tempo diante dos obstáculos que a vida lhe impôs, nem desconfiam que o plano de Krank não deu certo. Diante da figura amedrontadora do cientista, as crianças raptadas não conseguem ter sonhos, apenas pesadelos, o que provoca a ira do velho precoce. Quem tenta segurar seus ataques são seus subordinados (todos vividos por Dominique Piñon), criaturas tão estranhas quanto ele que são criados como se fossem seus filhos adotivos, uma trupe de clones do próprio cientista que os criou que sofrem da doença do sono. A anã Miss Bismuth (Mireille Mosse), sua esposa, também criada através de uma clonagem mal sucedida, faz o que pode para ajudá-lo a superar suas frustrações e conta com os conselhos de um cérebro falante que vive dentro de um aquário e tem visões através de um aparelho especial, mas o órgão ironicamente sofre de terríveis enxaquecas que o atrapalham em suas pesquisas para descobrir como fazer uma pessoa voltar a sonhar. Por trás de toda esta fantasia, está uma mensagem acerca do crescimento pessoal diante das experiências, algo que fica claro na relação estabelecida entre Miette e One que pode até insinuar um sentimento a mais que simples amizade. A dupla e o conjunto de seres bizarros que compõem a trama ganham facilmente a simpatia do público e ajudam a dar uma desculpa para continuar assistindo o filme até o fim já que a o longa é literalmente uma viagem, um caldeirão de referências narrativas e técnicas visuais que resulta em uma produção pontuada por bons momentos, mas longe de ser perfeita. A mistura de um cenário misterioso com personagens que parecem pinçados de contos de fadas, histórias em quadrinhos, desenhos animados e clássicos da literatura se deve ao fato da produção ter caprichado na criação dos figurinos, maquiagem e acessórios. Todos esses elementos foram feitos artesanalmente com materiais simplórios e pouca computação gráfica foi usada na pós-produção, o que torna a apreciação desta obra até mais especial. A fotografia e os ângulos de filmagem ajudam a realçar todos os atributos visuais do longa, sendo possível perceber até mesmo o tipo de materiais utilizados para a confecção de cada peça, e olha que não são poucos os detalhes a serem observados.

É interessante reparar também que durante quase toda a duração do filme um tom esverdeado é predominante nas cenas, muito por causa da cor da água (provavelmente contaminada) que compõem boa parte do cenário já que a trama girar em torno de um homem recluso em uma torre no meio do mar, na realidade, as ruínas de uma plataforma petrolífera, aquele bom e velho clichê da pessoa com algum tipo de deficiência que a faz se sentir rejeitada pela sociedade e lhe força a viver recluso em algum lugar isolado. Como diz o ditado, mente vazia é a oficina do Diabo e a rotina melancólica de Krank propicia o desenvolvimento de distúrbios mentais. Essa história que se desenrola em tempo e espaço indeterminados, provavelmente em um futuro apocalíptico, obviamente não é para todos os públicos e até mesmo alguns membros de grupos mais seletos não devem aplaudir o longa ou considerá-lo uma perfeição. É preciso confessar. O enredo é bem interessante, o visual é deslumbrante, mas o desenvolvimento do texto deixa um pouco a desejar. Talvez por possuir tantos elementos visuais e muito a ser explorado em cada fotograma, a obra acaba caindo numa armadilha da própria originalidade. Prestamos mais atenção nos elementos cênicos e caracterizações dos personagens do que na história em si. Comumente acabamos entrando em contato inconscientemente com pensamentos oníricos e quando percebemos a narrativa caminhou sem acompanharmos seus passos. Apesar de não ser uma produção longa, o ritmo por vezes arrastado colabora para essa dispersão. Ladrão de Sonhos é um tipo de produto que deveria se encaixar nos gêneros filme experimental ou obra de contribuição artística, isso se essas categorias fossem padrões. Não é um trabalho perfeitinho daquele tipo que você diz que não há nada fora do lugar, pelo contrário, mas se sua narrativa não é totalmente satisfatória, só seu visual já compensa e eleva suas pontuações, ainda mais se levarmos em conta que é um filme independente francês e que utilizou o que havia de mais moderno no campo dos efeitos especiais da época, porém, com cautela. No conjunto, a produção é um misto de pesadelo e sonho onde tudo é possível, criaturas fantásticas podem surgir a qualquer momento e que não tem o compromisso de ter uma narrativa linear, assim como nossos pensamentos voam livres enquanto dormimos. Bizarro, inovador, criativo, maluco, sem pé e nem cabeça, esses são apenas alguns dos adjetivos que se encaixam com perfeição para resumir esta fábula, tudo depende dos olhos de quem vê. Pena que assisti-la hoje em dia é difícil. Obviamente é um título que não faz parte do repetitivo cardápio da TV aberta ou paga e hoje seu DVD está fora do catálogo, mas com sorte garimpando em boas lojas, locadoras ou sebos é possível encontrar essa raridade.

Aventura - 108 min - 1995

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