NOTA 8,0 Longa mostra a realidade dos artistas circenses através do olhar de um palhaço que busca sua identidade fora do palco |
Em meio ao bombardeio de inovações tecnológicas e efeitos
especiais de última geração que chegam aos nossos cinemas e ao mercado de vídeo
doméstico semanalmente não é de se espantar que um simples filme brasileiro
perca espaço, podendo ter uma exibição restrita ao circuito alternativo e de
arte ou até mesmo ser lançado diretamente em DVD sem qualquer tipo de respaldo
publicitário. Ainda bem que existem apreciadores e realizadores para obras mais
simplórias e com preocupação maior com o conteúdo, pessoas realmente
apaixonadas pela sétima arte. É isso que o ator e diretor Selton
Mello prova com a sua segunda incursão cinematográfica atrás das câmeras após Feliz
Natal, seu elogiado drama de estreia. O Palhaço é uma produção
relativamente simples, mas que conquista a atenção dos espectadores com seu
visual colorido e história emocionante e extremamente simpática, contando com
diversas citações para homenagear aqueles que já trouxeram muita alegria ao
público, como o quarteto dos Trapalhões e Oscarito. A história
gira em torno do palhaço Pangaré (Selton Mello), uma das estrelas do circo
Esperança que, infelizmente, cada vez mais sente a escassez de público a cada
nova cidade que passa. As grandes gargalhadas, olhares curiosos e expressões de
felicidade de outrora ficaram como uma doce e inesquecível lembrança para a
maior parte dos funcionários e artistas. Porém, o rapaz que ainda continua bem
jovem e com disposição usa e abusa de expressões corporais e faciais e lança
mão de algumas piadas mais fortes para conseguir segurar a atenção do público e
manter a sua trupe circense em atividade. Bem, essa imagem positiva ele tem no
picadeiro diante da plateia, mas nos bastidores a coisa é bem diferente. Seu
nome de batismo é Benjamim e o rapaz anda muito insatisfeito com a vida que
leva, um incômodo que aparentemente só ele tem e não é compartilhado por outros
membros dessa grande família itinerante que se acostumaram com um cotidiano sem
luxos e finanças escassas. As razões para seu desgosto podem estar em seu relacionamento
com seu pai Valdemar (Paulo José), que lidera o circo e dá vida ao palhaço Puro
Sangue. Ironicamente, entre tantas dúvidas e melancolia, Benjamim fica obcecado
pela ideia de conseguir um ventilador para a namorada do pai, a dançarina Lola
(Giselle Motta), como se a aquisição desse objeto que para tantos já é algo
obsoleto significasse um sinal de que as coisas vão melhorar ou simplesmente
uma desculpa para o protagonista descobrir pelo menos um pouquinho do mundo que
até então desconhecia. Durante o trajeto, diversos tipos bizarros cruzam seu
caminho e o ajudam em sua busca que no fundo é a procura por sua real
identidade.
O roteiro criado pelo próprio Mello em parceria com Marcelo
Vindicatto transita com facilidade entre a melancolia e a felicidade explorando
nos diálogos as tristezas e dificuldades que os artistas circenses enfrentam.
Por exemplo, Benjamim é praticamente um indigente. Não tem mais do
que uma certidão de nascimento para comprovar sua existência, porém, seu
trabalho exige que ele não crie raízes por onde passa. Sua história de vida até
aqui está totalmente presa ao mundo do circo do seu pai, mas ele almeja outros
rumos para sua trajetória. Ou seja, o palhaço está em um momento da vida que
está passando por uma crise existencial e questionando seu trabalho. A ideia do
longa surgiu justamente por causa de uma fase semelhante que o próprio Mello
passava. Sua crise existencial o inspirou a investir em uma história
protagonizada por um personagem que literalmente busca sua identidade no mundo,
pois chegou o momento em que caiu a ficha que ele não teve chances para
conhecer a vida fora das tendas de lonas do circo. Ele não escolheu ser
palhaço, simplesmente foi inocentemente levado a se tornar um por falta de
oportunidades para ver a vida por outros ângulos, mas a famosa fase rebelde
pela qual todo ser humano passa o tomou de assalto tardiamente. Como diz o
ditado popular, antes tarde do que nunca. O contraste entre a alegria do
picadeiro e o vazio dos bastidores sentido pelo protagonista é perfeitamente
exposto graças a uma excelente direção de arte e de iluminação que aqui assumem
papéis de extrema importância para ajudar a contar esta história que nos
apresenta outro lado do mundo circense e nos desperta a dar mais valor aos
profissionais que escondem suas verdadeiras facetas atrás de maquiagens
coloridas e sorridentes, viés pouco original já que são de conhecimento público
diversas histórias de artistas circenses que divertiram muitas gerações, mas
que na realidade passaram anos e anos sofrendo em silêncio por diversas
razões. Todavia, a repetição do argumento referente a melancolia
destes profissionais em nada diminui o valor desta obra, pelo contrário, é até
possível dizer que ela conta com um pouco do espírito do clássico Os Palhaços do
mestre Frederico Fellini. Aos poucos o bom humor explicitado nas cenas iniciais
abre espaço para que o roteiro explore outros caminhos a partir do momento em
que tomamos contato com a vida desses artistas e percebemos que nem tudo são
flores. A cada nova cidade que visitam não se sabe o que pode acontecer, aliás,
eles vivem na incerteza, inclusive se haverá o espetáculo de amanhã. Suas
únicas certezas são de que no dia presente precisam transmitir de qualquer
maneira alegria mesmo que para um minguado público e se eles próprios não
estiverem no pique.
O protagonista da trama traz um apanhado de referências que
lembram o humor quase sempre presente nas interpretações de Mello, mas na
verdade Pangaré foi oferecido a outros destaques do nosso cinema como Wagner
Moura e Rodrigo Santoro, mas suas agendas abarrotadas de compromissos não
permitiram suas participações. Há males que vem para o bem. Ao comprometer-se a
frente e atrás das câmeras, Mello comprova que cada vez mais está se
aprofundando na arte cinematográfica fazendo jus aos números estonteantes de
pessoas que ele já levou às salas de exibição durante toda a sua carreira que
parece ter chegado ao seu ápice com esta obra. Ele pode surpreender com novos
projetos, seja só como ator ou como diretor ou ainda acumulando as duas funções
ou até mais, porém, a importância deste filme dificilmente será abalada
simplesmente pela delicadeza e sensibilidade com que este profissional conduziu
um filme repleto de significados e reflexões que não se prendeu a atender aos
anseios de plateias de exímios intelectuais, mas procurou atrelar-se a uma arte
popular para atingir a um público bem maior. Por se tratar de um
“projeto-terapia” com o qual Mello procurava um novo sentido para dar a sua
carreira, ele poderia ter criado um protagonista escritor, artista plástico ou
filósofo, mas foi buscar no circo a inspiração, talvez uma forma de fazer as
pazes com seu público órfão da TV que o aplaudiu em obras como O Auto da
Compadecida e Lisbela e o Prisioneiro, mas não reconheceu o ator em trabalhos
mais densos como O Cheiro do Ralo e Jean Charles. Outros destaques do longa são
as presenças de Danton Mello, Jackson Antunes, Tonico Pereira, Emilio Orciollo
Neto e dos humoristas Jorge Loredo e Moacyr Franco, este último ganhando um
reconhecimento que talvez jamais esperasse receber aos 75 anos de idade e
curiosamente estreando na sétima arte. E claro que também vale ressaltar Paulo
José atuando com muito prazer e emprestando ao seu idoso palhaço todo seu
carisma e verdade. O Palhaço tem todos os ingredientes necessários para
ser considerado um dos grandes sucessos do nosso cinema recente, ainda mais se
levarmos em consideração as dificuldades para se contar uma história que flerta
com a leveza, o bizarro e a dura realidade sem precisar dar um soco no estômago
do espectador como geralmente é feito por nossos cineastas. Com enredo bom,
elenco afiado, produção caprichada, apoio da imprensa para divulgação, o longa conseguiu
achar uma brecha para adentrar nos multiplex de alguns shoppings e participou
de festivais e mostras de cinema antes da estreia oficial. Para confirmar o
triunfo desta sensível e bela obra, basta deixar a criança que existe em você
falar mais alto e mergulhar fundo na magia do circo, mesmo que com um pezinho
fincado em uma triste realidade. Ainda bem que existem pessoas como Mello para
nos mostrar que as coisas boas e simples da vida rendem maravilhosas e
envolventes histórias sem precisar de efeitos especiais, tridimensionais, som
de última geração e tudo o mais que só serve para escamotear a falta de
conteúdo. Parabéns a ele, aos profissionais do circo e a todos aqueles que se
permitirem viver a experiência de assistir a este filme, um espetáculo
literalmente.
Drama - 90 min - 2011
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