NOTA 9,0 Drama que enfureceu católicos no final dos anos 80 ainda tem potencial para impactar, mas parece que suas chagas foram esquecidas |
Todo e
qualquer filme com conteúdo religioso ou mais especificamente que evoque a
imagem de Jesus Cristo de alguma forma costuma gerar polêmicas assim que surgem
as primeiras notícias de que alguém terá coragem de mexer com esse vespeiro,
principalmente quando tal figura cristã será retratada com toques mais
realistas e desprovida do semblante de ser iluminado e livre de pecados que a
maioria dos católicos se apegam em suas preces. Mel Gibson deu a cara para
bater assumindo a direção do polêmico e angustiante A Paixão de Cristo em 2004 e lucrou alto, mas dezesseis anos antes
Martin Scorsese não teve a mesma sorte. Grupos conservadores atacaram
ferozmente A Última Tentação de Cristo, drama literalmente longo baseado
no romance homônimo de Nikos Kazantzákis publicado originalmente em 1951.
Lançado nos EUA de maneira estratégica em poucas salas 40 dias antes da data
prevista para gerar burburinho na mídia e consequentemente enfraquecer os
comentários negativos dos cristãos, o filme começa já com o aviso de que não é
baseado nas escrituras do Evangelho e que seu real objetivo é falar do conflito
entre o espírito e a carne ou em outras palavras da razão versus o desejo
tomando como instrumento Jesus Cristo imaginando como seria sua vida se caísse
em tentação. O ator Willem Dafoe dá vida ao protagonista, um carpinteiro da
Judeia que vive um grande dilema, pois é ele quem faz as cruzes com as quais os
romanos crucificam seus oponentes, os judeus, assim ele se sente um traidor
perante seu povo. Sua revolta interior o faz se sentir constantemente inquieto
e o leva a se autopenitenciar sem piedade. Além disso, ele tem plena fé de que
Deus tem um plano traçado que justificaria sua presença entre os mortais, mas
ao mesmo tempo não se vê como um messias e sim um homem comum que tem
necessidades carnais e precisa relutar contra seus desejos, ainda que não saiba
bem o porquê. Judas Iscariotes (Harvey Keitel) havia sido designado a matar
Jesus, mas ao suspeitar que ele é um enviado do Senhor pede para liderar uma
revolução contra os romanos, porém, recebe como resposta de que o amor é a sua
grande mensagem para a humanidade. Procurando resolver seu conflito interior, o
carpinteiro decide ir para o deserto vivenciar uma espécie de retiro espiritual,
mas antes pede perdão a Maria Madalena (Barbara Hershey), uma prostituta que
acreditava que o relacionamento entre eles podia ser sua salvação. Mesmo
brigados, mais tarde o rapaz a salva de uma multidão que se reuniu para
apedrejá-la lembrando que todos tem seus pecados e merecem perdão.
No deserto,
Jesus testa sua conexão com Deus desafiando as forças do Mal que se apresentam
na forma de uma cobra, um leão e uma grande labareda de fogo que tentam
desvirtuar seu caminho, mas ele vence todas as tentações e se depara com a
imagem de um machado que surge como resposta ao seu dilema em seguir o caminho
da revolta e violência ou optar pela trilha do amor simbolizada por um coração.
Ele escolhe a segunda opção e vai ao encontro de seus discípulos que passam a presenciar
os milagres de Jesus como a restauração da visão de um cego, a transformação da
água em vinho e a volta de Lázaro (Tomas Arana) do mundo dos mortos, este que
depois acaba sendo friamente assassinado por soldados romanos, pois ele seria a
prova definitiva da presença de um messias entre os mortais. Quando Jesus é
capturado com a ajuda de Judas atendendo a um pedido seu, o messias é
confrontado por Pôncio Pilatos (David Bowie) que lhe sentencia a morte por lhe
considerar uma ameaça ao Império Romano. Antes disso, em público quando
criticava o mercado de troca de moedas que havia se tornado o Templo de
Jerusalém, o carpinteiro já tinha recebido um sinal divino de que seu sangue
deveria ser derramado para salvar a humanidade e por isso se conformou com sua
crucificação. É nesse momento que temos a justificativa do título. Em uma
alucinação, Jesus escapa da morte graças a uma garotinha (Juliette Caton) que
se apresenta como seu anjo da guarda dizendo que foi enviada por Deus para
agradecer tudo o que ele fez até então e que seu desejo é que ele seja feliz
como um homem comum. Assim, de forma invisível aos olhos dos outros, ele
reencontra Maria Madalena e pensa em formar uma família, mas uma tragédia
acontece e outros eventos que a sucedem fazem Jesus refletir se não teria sido
melhor morrer, ter fugido da última tentação. Esse último ato não é um devaneio
do autor do livro e tampouco do roteirista do filme, Paul Schrader repetindo a
parceria com o diretor do cult Taxi
Driver. O islamismo prega a crença de que Cristo escapou da crucificação e
levou uma vida comum até ter uma morte natural bem velhinho, pensamento
difundido por Maomé que considerava a si mesmo como um profeta. Reimaginar o
final de uma das histórias mais famosas e reverenciadas do mundo não foi nada
fácil e os bastidores desta produção praticamente renderiam outro filme,
dramatizado ou em estilo documentário. Scorsese havia ganho um exemplar do
livro em 1972 da amiga Barbara Hershey e se encantou pela trama densa e prosa
rebuscada e desde então sua obsessão era fazer a sua adaptação cinematográfica.
O longa começou a ganhar corpo em 1983 sob a batuta do estúdio Paramount. Com
elenco escalado e locações escolhidas em Israel, o projeto foi abruptamente
cancelado pelo orçamento elevado e as mensagens de protestos que a companhia
recebeu de grupos religiosos.
Três anos
depois a Universal se interessou pelo material e Scorsese propôs rodar o filme
com metade do orçamento original e em tempo recorde. Foram três meses de
trabalho intenso no Marrocos, com direito a muita improvisação, mas o resultado
final é uma bela obra-prima e a prova de coragem de uma empresa confiante (pelo
menos na época) que a arte vem em primeiro lugar, afinal já sabiam das críticas
negativas que enfrentariam pelo fato do longa bater de frente com um dos
principais ensinamentos da Igreja Católica: a natureza humana e ao mesmo tempo
divina de Cristo. No filme ele é apresentado como um homem comum e que aos
poucos vai desenvolvendo a consciência de que é um ser elevado espiritualmente.
Scorsese, portanto, quebrava um protocolo. Filmes mais antigos não chegavam nem
a mostrar o rosto do ídolo católico, o representavam através de fachos de luz,
voz ou algum tipo de sinal, e os que ousavam apresentá-lo fisicamente o dotavam
de alguma característica que o tornaria único, tal como uma aura iluminada ou
em tamanho maior que uma pessoa comum. O Cristo vivido por Dafoe, em excelente
interpretação, se perde facilmente na multidão devido ao seu visual realista e,
apesar de sempre ter alguma mensagem de conforto na ponta da língua, um
semblante pesado que sempre o acompanha devido as angústias que tenta digerir
mesmo quando se assume como um líder. Apesar de desconstruir de certa forma a
imagem esplendorosa cultivada pelos católicos, isso é feito com muito respeito
e consciência. Pode também ter contribuído para a revolta dos religiosos mais
fervorosos, que incendiaram cinemas e chegaram a ameaçar Scorsese de morte, o
fato do apóstolo Paulo (Harry Dean Stanton), que surge com força na reta final,
ser apresentado como uma figura desprezível e que lança mão até de mentiras
para defender seu credo, uma alusão aos caminhos tortuosos seguidos pelo
cristianismo ao longo da História varrendo muitos fatos sujos para debaixo do
tapete para manter sua influência. O tempo passou, mas infelizmente A
Última Tentação de Cristo continua sofrendo com seus estigmas, ou pior,
nem eles mais provocam dor, simplesmente a obra foi esquecida. Esta é uma
grande injustiça com uma produção refinada, brilhantemente dirigida e
interpretada e com fotografia e locações que desbancam muita superprodução
atual, e obviamente não se pode deixar de fazer um último elogio à narrativa
que embora lenta consegue prender a atenção utilizando metáforas quanto a
conceitos religiosos que resgatam passagens bíblicas e outras que fazem alusão
ao que a religião se tornou na Era Moderna, uma sutil crítica que não se
restringe ao catolicismo e que se faz atual até os dias de hoje. Quem sabe se
as premiações tivessem realmente reconhecido os méritos desta produção ela
poderia estar ostentando o status de clássico. O Oscar só indicou Scorsese ao
prêmio de direção, desprezando totalmente os irrepreensíveis aspectos técnicos
do longa. Hershey ganhou o Globo de Ouro de Melhor Atriz Coadjuvante, mas como
explicar o fato de que Keitel venceu o Framboesa de Ouro de pior coadjuvante?
Compare com os atores que ganharam as últimas edições deste “prêmio-fanfarra” e
chegamos a seguinte conclusão: não se faz mais cinema como antigamente. O nível
descambou definitivamente.
Drama - 163 min - 1988
Nenhum comentário:
Postar um comentário