NOTA 6,0 Longa aposta na paranoia para envolver espectador, apresentando um universo paralelo e fantástico onde ficção e realidade se misturam |
O gênero de terror no início da
década de 2000 ficou marcado pela coqueluche das refilmagens americanas
baseadas em originais orientais, produções que em sua maioria trocavam o sangue
e a violência explícitos por uma experiência muito mais calcada na construção
de um clima sombrio e sustos provocados por trucagens de câmera, sonoras e de
edição. Bastaram alguns poucos sucessos hollywoodianos do tipo para que o
interesse pelos produtos oriundos do Japão, China, Coréia e companhia bela conseguissem
uma brecha no acirrado mercado de exibição e nas prateleiras das locadoras.
Além dos filmes que inspiraram as versões americanas, chegaram ao grande
público também obras inéditas péssimas, outras medianas e algumas que mesmo
sendo boas sofriam com a carência ou má publicidade. Diretamente de Hong Kong, Assombração
se encaixa na opção do descaso das distribuidoras, embora tenha tido como
primeira grande vitrine o Festival de Cannes. Com direção dos irmãos chineses
Danny e Oxide Pang, que causaram certo barulho pouco antes com Visões, o filme virou automaticamente
uma febre após sua pomposa estreia na França que mexeu com os ânimos dos
empresários do setor cinematográfico, porém, em vários países o longa foi mal
lançado como no caso do Brasil. Como deixa explícito o próprio título original,
Re-cycle, a obra recicla uma série de
referências a outras produções representantes do terror oriental, ainda que em
uma época em que tais fórmulas já davam sinais de desgaste. Todavia, este
exemplar do cinema de horror chegava com uma pegada diferenciada, mas o
genérico título nacional tratou de vender uma ideia ligeiramente diferente
sobre o produto. Climão de suspense existe aqui, mas os sustos são na base do
conta-gotas e com pouco impacto. O que impressiona neste caso é o misto de
sonho e pesadelo atrelados a um roteiro complexo e com até certo toque poético
em seus momentos finais. Escrito por Pak Sing Pang, Cub Chien, Sam Lung e pelos
Pang Brothers, como os cineastas gostam de ser chamados, o enredo nos apresenta
à escritora Tsui Ting-Yin (Angelica Lee Sinje) que usa o codinome de Chu Xun e
que afirma que só consegue escrever sobre experiências que teve a chance de
viver. Após seu primeiro romance tornar-se um best-seller e até ser adaptado
para o cinema, o público estava ansioso pelo seu próximo trabalho, o problema é
a pressão que ela passou a sentir. Durante uma noite de autógrafos, Lawrence
(Lawrence Chou), seu agente, aproveitando-se de um modismo e para segurar
público, anuncia que o próximo projeto da jovem abordará um tema sobrenatural e
já teria sido intitulado como “Assombração”. O público fica empolgado com a
ideia, pois acredita que a nova obra também contará com elementos
autobiográficos narrando experiências da autora com o mundo sobrenatural, contudo,
ela não tem a mínima intimidade com o assunto. Ou melhor, não tinha até então.
Tentando se concentrar o máximo
possível, Ting-Yin encontra dificuldades para dar o pontapé inicial de seu novo
livro. Além da falta de inspiração, o retorno de um ex-namorado está deixando-a
muito perturbada. Mesmo assim, ela consegue escrever o rascunho de um capítulo,
mas não gosta do material e decide o deletar do computador, esquecendo-se de
apagar o arquivo da lixeira. A partir desse momento, a escritora passa a ser assombrada
por estranhos acontecimentos dentro de seu próprio apartamento que
estranhamente parecem ter ligações com os seus esboços para o seu trabalho
atual. Essa introdução segue a linha comum a tantas outras produções de horror
orientais provocando pânico na protagonista através de vultos, ruídos
estranhos, telefonemas com murmúrios amedrontadores ou fios de cabelos que
claramente são de outra pessoa e que surgem misteriosamente em sua casa. Logo o
espírito atormentado de uma pessoa, provavelmente uma mulher, com uma longa
cabeleira cobrindo o rosto surge para dar uma bem-vinda reviravolta à trama. A
previsível fórmula de sucesso abre espaço para uma arriscada viagem por um
mundo em que realidade e fantasia se misturam, uma espécie de releitura
sinistra de Alice no País das Maravilhas.
De uma hora para a outra, Ting-Yin vai parar em um universo paralelo, um
estranho lugar que parece um depósito de bens, pessoas e emoções abandonadas. Totalmente
confusa, cercada por estranhas criaturas e sempre com a tal figura macabra que
viu em seu apartamento em seu encalço, a escritora inicia uma travessia
aparentemente sem fim para tentar encontrar ao menos algum refúgio. Apesar do
ritmo arrastado, alguns minutos a menos seriam benéficos, a constante troca de
cenários conforme a protagonista embrenha-se por este universo surreal ajudam a
prender a atenção. Não há realmente sustos a esperar, portanto, a melhor
diversão é aguardar as surpresas em relação as bizarrices que estão por vir. A
protagonista tem dificuldades para distinguir o que é real do que é fantasia de
sua mente, mas intui que o melhor que tem a fazer é seguir a tal misteriosa
aparição que a persegue. Se ela deseja escrever um livro sobre os mistérios do
outro mundo, nada melhor que ela própria vivenciar esta experiência. Os Pang
Brothers felizmente deixam de lado o batido tema da criança desencarnada cuja
alma fica presa no mundo real para perturbar a vida dos humanos, ou melhor, até
aborda tal viés, mas com certo teor dramático. A pequena Qigi Zeng surge em cena
como Ting-Yu, a garotinha que ajuda a protagonista a caminhar pelo apocalíptico
mundo que se não é o purgatório é um lugar intermediário a ele. Em meio ao
clima pesado e constante deste universo, a menina traz algum alento a
trajetória de Ting-Yin, de quebra trazendo uma mensagem de perdão, o tal
momento poético citado no início do texto.
Abrindo mão das facilidades e
da previsibilidade de situações em que o público fica na expectativa de quem
será a próxima vítima, Assombração cumpre bem suas metas de
amedrontar através da paranoia apresentada em uma cadência de emoções que
conseguem envolver de forma que quem assiste a certa altura poderá estar
perdido no mesmo caos em que se encontra a personagem principal, ou seja,
temendo até a própria sombra. Na concepção desse universo bizarro, os cineastas
mostram o grande trunfo da produção, um espetáculo visual cheio de criatividade
e que aposta no casamento das cores vivas com os tons mais “downs”,
provavelmente os aspectos que chamaram a atenção de exibidores que a conferiram
em primeira mão em Cannes, mesmo que em algumas sequências os efeitos especiais
não escondam a precariedade do filme. Todavia, antes pouco orçamento e muito
cérebro e talento envolvidos no projeto do que o contrário. Por outro lado, o investimento
no visual do longa não foi dedicado em igual proporção ao roteiro que poderia
ser mais enxuto dispensando explicações tolas sobre o mundo espiritual e
imprimindo mais mistérios a um filme cuja conclusão é previsível, visto que ele
se apóia praticamente em toda a sua duração sobre os pilares de um pesadelo. O
regresso a realidade é uma certeza. De qualquer forma, dá vontade de assistir a
uma segunda vez para procurar as peças-chaves que justificam a conclusão, sendo
ainda possível fazer uma análise ainda mais profunda da obra comparando-se o
passado e o presente. A protagonista vive em um moderno apartamento que desde a
disposição dos cômodos até o design dos móveis tudo transpira sofisticação, mas
em seu passeio por um mundo paralelo ela conhece o avesso da cidade cheia de
arranha-céus em que vive. Ela descobre um lugar feio, sujo, repleto de favelas,
florestas e construções milenares destruídas pela ação do tempo. As histórias e
personagens descartados por Ting-Yin que surgem durante o clímax também é uma
maneira de dizer que a correria dos tempos atuais nos faz abandonar muitas
coisas, inclusive as nossas próprias lembranças como um lixo qualquer. Tais
reflexões implícitas têm a ver com o momento político e histórico que Hong Kong
vivia na época deste lançamento, mas ainda fazem sentido e se aplicam a outros
territórios. Vale uma conferida sem fazer pré-julgamentos e rotulagens.
Suspense - 108 min - 2004
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