quinta-feira, 7 de janeiro de 2016

ASSOMBRAÇÃO (2004)

NOTA 6,0

Longa aposta na paranoia para
envolver espectador, apresentando
um universo paralelo e fantástico
onde ficção e realidade se misturam
O gênero de terror no início da década de 2000 ficou marcado pela coqueluche das refilmagens americanas baseadas em originais orientais, produções que em sua maioria trocavam o sangue e a violência explícitos por uma experiência muito mais calcada na construção de um clima sombrio e sustos provocados por trucagens de câmera, sonoras e de edição. Bastaram alguns poucos sucessos hollywoodianos do tipo para que o interesse pelos produtos oriundos do Japão, China, Coréia e companhia bela conseguissem uma brecha no acirrado mercado de exibição e nas prateleiras das locadoras. Além dos filmes que inspiraram as versões americanas, chegaram ao grande público também obras inéditas péssimas, outras medianas e algumas que mesmo sendo boas sofriam com a carência ou má publicidade. Diretamente de Hong Kong, Assombração se encaixa na opção do descaso das distribuidoras, embora tenha tido como primeira grande vitrine o Festival de Cannes. Com direção dos irmãos chineses Danny e Oxide Pang, que causaram certo barulho pouco antes com Visões, o filme virou automaticamente uma febre após sua pomposa estreia na França que mexeu com os ânimos dos empresários do setor cinematográfico, porém, em vários países o longa foi mal lançado como no caso do Brasil. Como deixa explícito o próprio título original, Re-cycle, a obra recicla uma série de referências a outras produções representantes do terror oriental, ainda que em uma época em que tais fórmulas já davam sinais de desgaste. Todavia, este exemplar do cinema de horror chegava com uma pegada diferenciada, mas o genérico título nacional tratou de vender uma ideia ligeiramente diferente sobre o produto. Climão de suspense existe aqui, mas os sustos são na base do conta-gotas e com pouco impacto. O que impressiona neste caso é o misto de sonho e pesadelo atrelados a um roteiro complexo e com até certo toque poético em seus momentos finais. Escrito por Pak Sing Pang, Cub Chien, Sam Lung e pelos Pang Brothers, como os cineastas gostam de ser chamados, o enredo nos apresenta à escritora Tsui Ting-Yin (Angelica Lee Sinje) que usa o codinome de Chu Xun e que afirma que só consegue escrever sobre experiências que teve a chance de viver. Após seu primeiro romance tornar-se um best-seller e até ser adaptado para o cinema, o público estava ansioso pelo seu próximo trabalho, o problema é a pressão que ela passou a sentir. Durante uma noite de autógrafos, Lawrence (Lawrence Chou), seu agente, aproveitando-se de um modismo e para segurar público, anuncia que o próximo projeto da jovem abordará um tema sobrenatural e já teria sido intitulado como “Assombração”. O público fica empolgado com a ideia, pois acredita que a nova obra também contará com elementos autobiográficos narrando experiências da autora com o mundo sobrenatural, contudo, ela não tem a mínima intimidade com o assunto. Ou melhor, não tinha até então.

Tentando se concentrar o máximo possível, Ting-Yin encontra dificuldades para dar o pontapé inicial de seu novo livro. Além da falta de inspiração, o retorno de um ex-namorado está deixando-a muito perturbada. Mesmo assim, ela consegue escrever o rascunho de um capítulo, mas não gosta do material e decide o deletar do computador, esquecendo-se de apagar o arquivo da lixeira. A partir desse momento, a escritora passa a ser assombrada por estranhos acontecimentos dentro de seu próprio apartamento que estranhamente parecem ter ligações com os seus esboços para o seu trabalho atual. Essa introdução segue a linha comum a tantas outras produções de horror orientais provocando pânico na protagonista através de vultos, ruídos estranhos, telefonemas com murmúrios amedrontadores ou fios de cabelos que claramente são de outra pessoa e que surgem misteriosamente em sua casa. Logo o espírito atormentado de uma pessoa, provavelmente uma mulher, com uma longa cabeleira cobrindo o rosto surge para dar uma bem-vinda reviravolta à trama. A previsível fórmula de sucesso abre espaço para uma arriscada viagem por um mundo em que realidade e fantasia se misturam, uma espécie de releitura sinistra de Alice no País das Maravilhas. De uma hora para a outra, Ting-Yin vai parar em um universo paralelo, um estranho lugar que parece um depósito de bens, pessoas e emoções abandonadas. Totalmente confusa, cercada por estranhas criaturas e sempre com a tal figura macabra que viu em seu apartamento em seu encalço, a escritora inicia uma travessia aparentemente sem fim para tentar encontrar ao menos algum refúgio. Apesar do ritmo arrastado, alguns minutos a menos seriam benéficos, a constante troca de cenários conforme a protagonista embrenha-se por este universo surreal ajudam a prender a atenção. Não há realmente sustos a esperar, portanto, a melhor diversão é aguardar as surpresas em relação as bizarrices que estão por vir. A protagonista tem dificuldades para distinguir o que é real do que é fantasia de sua mente, mas intui que o melhor que tem a fazer é seguir a tal misteriosa aparição que a persegue. Se ela deseja escrever um livro sobre os mistérios do outro mundo, nada melhor que ela própria vivenciar esta experiência. Os Pang Brothers felizmente deixam de lado o batido tema da criança desencarnada cuja alma fica presa no mundo real para perturbar a vida dos humanos, ou melhor, até aborda tal viés, mas com certo teor dramático. A pequena Qigi Zeng surge em cena como Ting-Yu, a garotinha que ajuda a protagonista a caminhar pelo apocalíptico mundo que se não é o purgatório é um lugar intermediário a ele. Em meio ao clima pesado e constante deste universo, a menina traz algum alento a trajetória de Ting-Yin, de quebra trazendo uma mensagem de perdão, o tal momento poético citado no início do texto.

Abrindo mão das facilidades e da previsibilidade de situações em que o público fica na expectativa de quem será a próxima vítima, Assombração cumpre bem suas metas de amedrontar através da paranoia apresentada em uma cadência de emoções que conseguem envolver de forma que quem assiste a certa altura poderá estar perdido no mesmo caos em que se encontra a personagem principal, ou seja, temendo até a própria sombra. Na concepção desse universo bizarro, os cineastas mostram o grande trunfo da produção, um espetáculo visual cheio de criatividade e que aposta no casamento das cores vivas com os tons mais “downs”, provavelmente os aspectos que chamaram a atenção de exibidores que a conferiram em primeira mão em Cannes, mesmo que em algumas sequências os efeitos especiais não escondam a precariedade do filme. Todavia, antes pouco orçamento e muito cérebro e talento envolvidos no projeto do que o contrário. Por outro lado, o investimento no visual do longa não foi dedicado em igual proporção ao roteiro que poderia ser mais enxuto dispensando explicações tolas sobre o mundo espiritual e imprimindo mais mistérios a um filme cuja conclusão é previsível, visto que ele se apóia praticamente em toda a sua duração sobre os pilares de um pesadelo. O regresso a realidade é uma certeza. De qualquer forma, dá vontade de assistir a uma segunda vez para procurar as peças-chaves que justificam a conclusão, sendo ainda possível fazer uma análise ainda mais profunda da obra comparando-se o passado e o presente. A protagonista vive em um moderno apartamento que desde a disposição dos cômodos até o design dos móveis tudo transpira sofisticação, mas em seu passeio por um mundo paralelo ela conhece o avesso da cidade cheia de arranha-céus em que vive. Ela descobre um lugar feio, sujo, repleto de favelas, florestas e construções milenares destruídas pela ação do tempo. As histórias e personagens descartados por Ting-Yin que surgem durante o clímax também é uma maneira de dizer que a correria dos tempos atuais nos faz abandonar muitas coisas, inclusive as nossas próprias lembranças como um lixo qualquer. Tais reflexões implícitas têm a ver com o momento político e histórico que Hong Kong vivia na época deste lançamento, mas ainda fazem sentido e se aplicam a outros territórios. Vale uma conferida sem fazer pré-julgamentos e rotulagens.

Suspense - 108 min - 2004 

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