sábado, 13 de abril de 2024

DEIXE-ME ENTRAR


Nota 8 Refilmagem de sucesso sueco traz uma visão diferenciada e alegórica sobre os vampiros


O cinema produzido fora do circuito hollywoodiano cada vez mais vem ganhando projeção e admiração não só da crítica especializada, mas também do público. Porém, basta fazer sucesso que logo os produtores ianques se entusiasmam e correm atrás dos responsáveis para comprar os direitos de refilmagens. Isso acontece há anos, mas essa onda tem se intensificado devido a escassez de ideias que o cinema americano frequentemente enfrenta. Um dos trabalhos do tipo que gerou certo burburinho foi o suspense Deixe-me Entrar, produção que foi lançada com a propaganda extra de ser baseada no longa sueco Deixa Ela Entrar, um sucesso inesperado que foi exibido em diversos festivais de filmes de terror e independentes e chamou a atenção dos americanos. Produção de horror fazendo um paralelo com a chegada da adolescência, o longa reúne uma série de virtudes, ainda mais se considerando o gênero ao qual pertence. Roteiro inteligente, boas atuações, efeitos especiais usados com parcimônia e uma fotografia invejável são alguns dos elogios que cabem à obra. Como em Hollywood hoje em dia pouco se cria e muito se copia, não demorou muito e o texto já estava nas mãos do diretor Matt Reeves para ganhar uma refilmagem. Diretor do inesperado sucesso Cloverfield - Monstro, o cineasta foi escolhido justamente por saber como aguçar a curiosidade dos espectadores. Somado a isso o entusiasmo pela boa aceitação da obra original e a atração que vampiros sempre exerceram em um público cativo, o projeto já nascia com tudo para dar certo.

A trama gira em torno de Owen (Kodi Smit-McPhee), um garoto solitário que vive com a mãe após a separação dos pais. Frequentemente ele é provocado e humilhado pelos valentões da escola e nutre dentro de si um desejo de vingança que extravasa as escondidas e para si mesmo. Certa noite ele conhece sua vizinha Abby (Chloe Moretz), uma garota que aparenta ter a mesma idade que ele, vive nas sombras e é tão quieta e sozinha quanto Owen, o que gera uma identificação imediata entre eles. Ambos tentam se esconder daqueles que podem lhes fazer algum mal, assim não é de se estranhar que a noite para eles é uma benção e o momento que se sentem mais a vontade. Logo os dois jovens estão trocando confidências e debatendo sobre a solidão ou a sensação de se sentir diferente dos outros, porém, o garoto nem desconfia que a jovem guarda segredos muito peculiares: ela é muito mais velha que sua aparência indica e precisa se alimentar de sangue. Para consegui-lo, seu acompanhante (Richard Jenkins) realiza assassinatos na calada da noite com o intuito de retirar o sangue das vítimas e levá-lo para Abby que se esforça ao máximo para não deixar que seus instintos a dominem forçando-a a matar para sobreviver, mas certamente uma hora será impossível conter seu instinto de violência. 


O início já apresenta cenas que deixam o espectador intrigado, mas o roteiro volta no tempo para explicar como as coisas chegaram até esse ponto. Essa história macabra, e ao mesmo tempo dramática e com toques de atualidade (o tema bullying), é baseada na obra do romancista John Ajvide Lindqvist que desmistifica a imagem do vampiro que o cinema ajudou a construir. O sadismo, glamour e sensualidade são deixados de lado para apresentar os aspectos negativos das vidas de tais criaturas. Vivem muitos anos, precisam matar para sobreviver e não conseguem controlar seus instintos, tudo para afastá-los de qualquer possibilidade de viver uma vida comum. São seres deslocados que devem se adaptar a sua triste ou feliz realidade, dependendo do ponto de vista, ou se esconder do mundo, viver nas sombras para não serem notados, como faz a protagonista que sofre por aparentar ser uma criança comum, mas que carrega o peso da idade em sua consciência e não pode ter relacionamentos estreitos com humanos, pois qualquer um pode ser a sua próxima vítima. Apesar de a trama ter um viés original, não é difícil imaginar no que vai dar a amizade entre duas pessoas que passam por conflitos semelhantes e que aqueles que durante todo o longa humilham Owen no final irão pagar pelo que fizeram, aliás, em uma cena que pode decepcionar aqueles afoitos por sangue, mas que deixa a câmera e a sonorização (ou a falta dela) fazerem o trabalho de amedrontar o espectador. 

Passado na década de 1980, o filme conta com muitas referências a época, como o popular jogo Cubo Mágico e o costume de frequentar pequenos comércios em busca de doces (raridade hoje em dia), além de uma trilha sonora também datada, tudo para ajudar a manter o clima sombrio e de suspense das produções do período, porém, evitando os efeitos especiais, imagens bizarras e sangue jorrando por todos os lados que eram uma coqueluche do cinema de terror antigamente. Explorando a ideia de que um vampiro só pode entrar em uma casa quando é convidado, Deixe-me Entrar é bem intrigante e deve deixar muita gente roendo as unhas sem recorrer a sustos fáceis, o que certamente decepciona aqueles que procuram um ataque sanguinolento a cada cinco minutos. Bem avaliado pela crítica, todavia, a obra perde alguns pontos por ter sido lançada com pouco tempo de distância da versão original e sem acrescentar nada de novo. Querendo aproveitar a evidência do original sueco na mídia, Hollywood correu para providenciar sua versão crente no sucesso e acabou se decepcionando com a bilheteria. Já diz o velho ditado: quem tem pressa come cru. Todavia, é preciso elogiar o bom senso de Reeves, também autor do roteiro, que não quis dar seu tom autoral a obra e respeitou o texto original, fazendo apenas algumas pequenas modificações, porém, a maior parte com sutileza. 


Como em time que está ganhando não se mexe, as únicas intervenções mais chamativas feitas por Reeves é o fato de retirar da narrativa alguns fragmentos de cunho sexual, provavelmente já pensando na classificação etária do longa, além de embaralhar a cronologia das cenas. Dessa forma, o diretor claramente não quis correr o risco de arruinar a imagem de uma obra positiva em todos os aspectos, preferindo preservar ao máximo a essência original. Isso não deve ser visto como preguiça, mas sim como inteligência de um profissional competente e que sabe colocar limites a si mesmo, coisa que muito cineasta precisaria aprender. Tal medida também carrega um certo quê de patriotismo por parte do cineasta ou até mesmo dos produtores: agradar o público americano que em geral odeia legendas e quase sempre ignora filmes estrangeiros. O produto final não é excelente, mas vale uma conferida, principalmente pelo foco diferenciado da história que, no fundo, coloca em pauta a situação dos excluídos da sociedade, ainda que em uma versão alegórica. Em resumo, digamos que este é um suspense com uma pegada intelectual.

Suspense - 115 min - 2010

Leia também a crítica de:

4 comentários:

renatocinema disse...

Não acho a versão americana "vergonhosa", porém, prefiro muito a obra original.

Rafael W. disse...

Eu ainda não assisti este, mas o original é um filme brilhante. Espero que este mantenha um pouco da mesma essência (não confio em refilmagens).

http://cinelupinha.blogspot.com/

Guilherme Z. disse...

Não vi o original, mas achei bem interessante a versão americana. O problema é que sempre a segunda versão acaba ganhando mais evidência, independente de ser boa ou não, e a obra em que foi baseada acaba virndo artigo de luxo, raridade.

Maxx disse...

Tanto o sueco quanto o americano são muito bons. Ótimo post. Abç e bons filmes.