NOTA 8,0 Um dos primeiros filmes do mexicano Guillermo Del Toro já deixava suas marcas abordando suspense, drama e fantasia com pano de fundo histórico |
Os melhores filmes de horror não
são aqueles escorados em efeitos especiais ou em violência gráfica. Ok, O Exorcista está aí como uma exceção à
regra, mas temos os clássicos O Bebê de
Rosemary, O Iluminado e até da safra mais recente Os Outros para comprovar que acima de tudo é preciso ter uma boa
história para contar sustentada por personagens críveis e motivações
essencialmente humanas. O título A Espinha do Diabo sugere
uma obra de literalmente gelar a espinha, mas levando a assinatura do cineasta mexicano
Guillermo Del Toro sabemos que não se trata de um terror convencional. Bem,
hoje conhecemos muito bem seu estilo de unir drama, fantasia e suspense, porém,
na época ainda era um ilustre desconhecido. Ele já tinha engatilhado projetos
em Hollywood, como Blade 2 e Hellboy, ambos já carregados de vícios
da indústria para faturar alto até por serem baseados em personagens existentes
no universo dos quadrinhos. Sendo assim, seu drama com pitadas de sobrenatural
tendo como pano de fundo a Guerra Civil Espanhola servia praticamente como seu
cartão de visitas. Em meados da década de 1930, um orfanato estrategicamente
instalado no meio do nada abriga os já órfãos e os filhos de pais recrutados
para o combate. A diretora Carmem (Marisa Paredes) é uma senhora bastante
rígida, mas bondosa, e que esconde uma fortuna em barras de ouro que são a
obsessão de Jacinto (Eduardo Noriega), um ex-interno que agora trabalha para a
idosa com quem também divide a cama eventualmente. Na verdade ele quer o
tesouro para fugir com a jovem Conchita (Irene Viseto), cozinheira da casa que
também é administrada pelo Dr. Casares (Federico Luppi), poeta, professor e que
guarda uma paixão platônica por Carmem por se sentir impedindo pela impotência.
Parece um novelão mexicano, mas a mente de Del Toro é muito mais fértil. A
relação amorosa mal resolvida destas pessoas vai interferir drasticamente no
futuro dos internos, entre eles Carlos (Fernando Tielve) que perdeu o pai
vítima de um ataque de bombas e é deixado lá por seu tutor. Logo que chega o
menino sente que a vida não será nada fácil e faz alguns amigos graças a
curiosidade que desperta por trazer alguns gibis na bagagem, um tesouro para um
grupo que necessitava de distração. Assim, de imediato, ele causa ciumeira em
Jaime (Iñigo Garcés), até então o centro das atenções e líder natural da
turminha.
Se já não bastasse o passado e o
presente de tristezas destas pessoas e o ambiente desolador do casarão, que
fica a um dia de distância da cidade mais próxima e tem um gigantesco míssil
cravado no pátio, o lugar ainda é assolado por lendas de fantasmas, mais
especificamente a história de Santi (Junio Valverde), um espectro de olhos
levemente esbugalhados, face pálida e cujo crânio solta uma espécie de fumaça
avermelhada, mas na verdade é como se fosse sangue fluindo, algo que tem a ver
com o que aconteceu a essa criança. Ele é um interno que sumiu misteriosamente
do local coincidentemente no mesmo dia em que o tal artefato de guerra por
pouco não causou uma tragédia de proporções assustadoras. Por medo de explosão,
ninguém ousou remover a bomba que nunca deixou de emitir sons que lembram um
tique-taque e assim ela permaneceu como uma indesejável lembrança de que há uma
guerra fora dos muros do orfanato, mas que a qualquer momento pode ressoar lá
dentro, inclusive com sua própria eclosão. Entre a tensão existente entre os
adultos, os questionamentos quanto ao míssil e até a imagem impressionante de
algo intrigante envasado e guardado por Casares (que ajudará a justificar o
título), Carlos vai juntando pistas que parecem se entrelaçar com a história de
Sandi que começa a aparecer para o garoto clamando por justiça. Isso sem falar
nas aporrinhações de alguns garotos que testam os limites da paciência do
novato, principalmente Jaime que com seu jeito autoritário parece querer
escamotear fragilidades. É preciso estar atento aos diálogos e situações para
conseguir montar o quebra-cabeça proposto, ainda que infelizmente no final a
resolução do mistério não se apresente tão acachapante quanto prometia ser, mas
nada que diminua a sensação de ansiedade mantida por todo o desenvolvimento da
trama. Ela causa impacto e empatia nas mesmas proporções. Com seu roteiro
literário, elaborada reconstituição de época apresentando um lúgubre e desanimador
cenário e ótimas interpretações, a produção não deixa de recorrer a
traquinagens de efeitos, como manifestações ectoplásmicas e sombras e ruídos
que surgem sem mais nem menos, mas nunca se rende ao susto fácil.
A qualidade técnica da fotografia,
exaltando o clima quente e árido diurno e a frieza e solidão que se instalam a
noite, além da trilha sonora instigante fazem toda a diferença para nos
envolvermos com a narrativa. O aspecto barroco e a casualidade dessa história
de fantasmas possui certo senso de identificação com as lendas inexplicáveis
que todos ao menos uma vez na vida já ouvimos e nos impressionamos,
particularmente aquelas que tomamos contato quando crianças ou adolescentes,
épocas em que naturalmente somos mais impressionáveis. Poderia ser rotulado
como uma versão cucaracha de um filme sobre espíritos infantis vingativos,
argumento de dez entre dez fitas de horror orientais, mas ao mesmo tempo
oferece as temáticas da ambição, moral e histórica para também ser enquadrado
como uma obra dramática. Na época houve até quem tenha justificado a fraca
exposição da fita por conta do lançamento quase simultâneo do citado Os Outros, produção falada em inglês,
mas com direção e texto original impregnados de verve latina e com o bônus de
visual esmerado e a presença luxuosa de Nicole Kidman como protagonista. Também
há comparações com O Sexto Sentido
visto que o argumento principal gira em torno de um garoto que se comunica com
um fantasma e a prevalência de dúvidas segura a trama com alguns poucos sustos
pontuais. Projeto lapidado ao longo de 16 anos, ninguém queria apostar em uma
mistura de gêneros tão excêntrica, até que Del Toro encontrou por acaso em um
festival de cinema em 1994 o renomado Pedro Almodóvar que gostou da ideia. Mesmo
com sua assinatura como produtor executivo, o longa só foi finalizado sete anos
mais tarde. A Espinha do Diabo é um modelo
de filme quase artesanal, tão bem realizado que temos vontade de conhecer as
ruínas do cenário tão crível sua concepção. É possível sentir as tristezas e
incertezas a cada palmo de chão ou parede, sensação intensificada pelas ótimas
atuações que equilibram com perfeição a visceralidade do elenco adulto com a inocência e intensidade
das crianças. Visto com anos de distância, hoje podemos encontrar semelhanças
diretas com O Orfanato, que o próprio
Del Toro produziu, assim como também podemos interpretar como um exercício para
sua obra máxima, O Labirinto do Fauno.
Muito interessante ver que embora em suas obras hollywoodianas acabe cedendo a
pressões da indústria, como Círculo de
Fogo, quando trabalha seus projetos pessoais e em seu país-natal o cineasta
preserve seu estilo e um universo particular onde transitam memórias de sua
própria infância marcada por fantasias e histórias tristes de guerra...
Felizmente fatos que conhecera por meio de contos e filmes, não vividos de fato
por ele.
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