NOTA 7,0 Visual estilizado chama a atenção para contar história de artista rebelde que teve oportunidades para vencer, mas seus vícios o derrotaram |
Muitos atores desacreditados
agarraram com unhas e dentes oportunidades que julgam únicas, mesmo que para
tanto precisem se distanciar de sua própria personalidade para dar vida a um
personagem completamente diferente de si mesmo. Os resultados geralmente
surpreendem e rendem prêmios, mas o mesmo não aconteceu com Benjamin Bratt ao
aceitar protagonizar Piñero, a dramatização da vida do
poeta, dramaturgo e ator latino Miguel Piñero. Quem? Pois é, talvez nesta
simples pergunta esteja implicitamente a resposta para o fracasso do filme
escrito e dirigido pelo cubano Leon Ichaso. Fora dos EUA, poucos conhecem a
história deste porto-riquenho que se mudou ainda criança com a família para a
“terra de sonhos” e se decepcionou com o que encontrou. Bratt, mais conhecido
como o interesse romântico de Sandra Bullock em Miss Simpatia e como um dos affairs da vida de Julia Roberts,
entregou-se de corpo e alma para retratar a conturbada e agitava vida do
agitador cultural, na verdade um entusiasta da contracultura que marcou época,
principalmente em Nova York, durante os anos 70 e 80 com o seu “Nuyorican Poets
Café”, um espaço reservado para performances de artistas alternativos que como
ele não viam sentido na arte tradicional que simplesmente lançava cópias em
sistemática industrial e desprovidas de emoções. Nesse ponto de encontros,
regados a drogas e álcool, Piñero e seus colegas declamavam poesias,
interpretavam peças e escutavam músicas, tudo acompanhado de gesticulações e
entonações de voz que remetiam a situações de protesto, como se clamassem para
serem ouvidos. Após viver uma infância problemática por conta da ausência do
pai, ver o sofrimento da mãe para cuidar de cinco filhos e constatar que o
propagado sonho americano é apenas uma utopia, o artista buscou as ruas como
consolo, onde logo se envolveu com pequenos crimes seguidos do envolvimento com
drogas e vida promíscua. O resultado foi a prisão durante anos, mas onde
aprendeu a se expressar através da escrita. Quando conseguiu a liberdade,
alcançou um enorme sucesso com a peça “Short Eyes” baseada em suas memórias dos
tempos de cárcere, produção vencedora de sete prêmios Tony, o Oscar do teatro.
Embora tenha chegado a atuar e escrever para a TV, teve um momento em que
Piñero passou a sentir os efeitos nocivos de sua vida desregrada, o que acabou
refletindo também em sua arte. A vida certinha não servia para ele que
costumava dizer que precisava se comportar mal para manter a qualidade de seu
trabalho.
O filme aprofunda esta relação
paradoxal. Embora não fosse de forma alguma um bom exemplo devido a seus vícios,
era inquestionável que jamais deixou ser franco, expressava absolutamente tudo
o que vinha à sua cabeça, e que sua arte era autêntica. Apesar de todo o
prestígio que conquistou sendo considerado um “artista maldito” com seus
trabalhos que contestavam governo, hipocrisia da sociedade e até mesmo o
conceito de família, o rapaz não conseguiu abandonar as drogas e para manter o
vício voltou a praticar pequenos furtos. Ele já sabia que seu fígado estava
comprometido, mas Ichaso não quis debater o que leva uma pessoa a antecipar a
própria morte, simplesmente tenta compreender a ideologia que rege a vida de
alguém que tem a coragem de viver cada dia intensamente e sem medo de morrer. É
previsível que seu destino seria a solidão, mas ele só se dá conta quando seus
amigos já não estão mais vivos. Bratt
consegue personificar todas as transformações do poeta até chegar ao fundo do
poço, um desempenho que para variar foi ignorado pelas principais premiações.
Nem o diretor confiava no ator para interpretar uma figura tão complexa, tanto
que o rapaz implorou pelo papel. É uma pena que todo seu esforço em nada
alterou os rumos de sua carreira, voltando a ser um mero coadjuvante. O que
teria dado errado visto que cinebiografias costumam ter boa recepção? São
vários os fatores. Além do fato de homenagear um artista desconhecido fora de
seu território, o longa foge de fórmulas batidas e dispensa a redenção ou lição
de moral. Piñero viveu apenas 40 anos, faleceu vítima de cirrose em 16 de junho
de 1988, mas sua passagem foi vivida intensamente e sua morte anunciada meses
antes o ajudou a se preparar psicologicamente ou quase isso. Tinha consciência
de que a cada nova injeção de alucinógenos seu tempo de vida diminuía, mas agia
seguindo seus instintos, o que lhe importava era o momento. Não havia como
limar as drogas do enredo e tampouco florear o final. Ele morreu praticamente
como um mendigo e o filme segue sua trajetória fielmente. Em tempos em que tal
vício parece descontrolado a ponto das pessoas irem as ruas lutar por sua
legalidade, defenderem o direito de se matarem pouco a pouco e consequentemente
levarem outras pessoas nessa onda, realmente é polêmico que filmes toquem no
assunto sem aplicarem uma mensagem moralista. Presença rara no cinema nos
últimos tempos, Rita Moreno, uma das vencedoras do Oscar e principais artistas
dos anos 60, surge em algumas cenas como a mãe do protagonista com conhecidos
lamentos e conselhos, mas sua participação não é aprofundada talvez justamente
para evitar os clichês. Ela chega a se perguntar onde está o garotinho tão
gentil que criou e o porquê de ele ter entrado para o crime se sempre teve tudo
o que precisava para ser feliz, mas o pieguismo não vai longe.
A intenção do filme não é mostrar
o sofrimento da família de um viciado e sim explorar a própria relação do
doente com o mundo das drogas, tentar verificar o que lhe atrai e como lida com
a contradição de saber que pode estar trocando um dia de vida por alguns
minutos de prazer. Para pessoas menos instruídas pode não ficar claro que o
longa não faz apologia às drogas, apenas lança seu olhar onipresente sobre esse
submundo. Parece que Piñero apenas se relaciona com más companhias, mas a
realidade é essa mesma. Uma pessoa que não é usuária dificilmente compactuaria
a manter amizade com um viciado, pois as noções de realidade entram em
conflito. O protagonista mostra bem isso chegando a um ponto que admite que
tudo o que faz só vale a pena quando está chapado. Além desse problema de
parecer uma afronta aos bons costumes, o longa foi lançado pouco tempo depois
que outro poeta rebelde ganhou as telas, o cubano Reynaldo Arenas retratado em Antes do Anoitecer, cinebiografia
narrada de forma mais tradicional apesar da vida do homenageado também ter sido
uma espiral com destino ao abismo. Talvez por isso Ichaso foi ousado na
apresentação de sua obra, o que também pode ter gerado resistência. Embora dê
para compreender a trajetória do homenageado, toda a trama é entrecortada por
cenas do passado, presente e futuro que se misturam sem cerimônia deixando uma
sensação incômoda como se algumas situações estivessem sendo adicionadas ao
acaso, além de também não ser muito eficiente o excesso do uso de câmera
tremida e fotografia com cores diferenciadas ou recorrendo à simplicidade do
branco e preto em alguns momentos. Tais efeitos são válidos para uma
introdução, conclusão ou cena intermediária de impacto, mas ao longo de toda a
narrativa cansa, uma viagem alucinante. Bem, a proposta aparentemente era essa
mesma. A confusão de imagens seria uma metáfora ao espírito inquieto do
protagonista, um convite para o espectador participar de seu mundo alternativo.
Vendo por esse lado, Piñero alcança seus objetivos,
deixando quem assiste angustiado, impotente e em vários momentos com a sensação
de asco, mas sejamos franco, não é o tipo de produção que você assiste com
prazer. Recomendável para quem curte refletir após os créditos finais ou está
precisando de um choque de realidade.
Drama - 103 min - 2001
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