NOTA 10,0 Drama sobre duas pessoas desconhecidas que disputam a posse de uma casa surpreende com rumos inesperáveis |
A obsessão pelo sonho americano também pode levar ao
pesadelo. Essa é a grande mensagem de Casa de Areia e Névoa e seus
protagonistas vivem de maneiras diferentes estes momentos. O conceito de que os
EUA é a terra das oportunidades surgiu após a Segunda Guerra Mundial quando os
ianques passaram a cultivar a imagem de grande potência. Assim muitas pessoas
partiram para lá sonhando com melhores condições de vida, mas na realidade as
coisas não são tão fáceis como mostra o longa de estreia do diretor Vadim
Perelman. Na verdade a mensagem não é restrita ao sonho americano, podendo ser
aplicada em várias situações do cotidiano. Quantas vezes você já não brigou por
motivos tolos? Às vezes o que é uma bobagem para os outros para você é de suma
importância naquele momento e vice-versa. Cada cabeça é uma sentença e a vida é
feita de conflitos que precisamos superar para nos tornar pessoas melhores, mas
em alguns casos as coisas são complicadas. Já diz o ditado quando dois não
querem dois não brigam, porém, quando ambas as partes estão dispostas a
duelar... O longa poderia ser facilmente resumido como a história de duas
pessoas que disputam um imóvel, cada qual com suas justificativas e ideais a
defender, uma briga que revela a falta de limites e o egoísmo do ser humano quando
movido pelo individualismo, mas o que fazer quando ambos os lados tem razões
convincentes? A premissa simplória na realidade se transforma em um angustiante
e envolvente drama pelas mãos do roteirista Shawn Lawrence Otto que adaptou em
parceria com o próprio Perelman o best-seller homônimo de Andre Dubus III, este
que já havia recebido praticamente uma centena de propostas para vender os
direitos de sua obra para o cinema. Curiosamente fechou com um estreante que
surpreendeu ao realizar uma obra madura e que é um verdadeiro soco no estômago.
Kathy Nicolo (Jennifer Connelly) é uma mulher que tenta se livrar do vício do
álcool, mas sua depressão é um grande empecilho. Abandonada pelo marido, há
meses ela se desligou do mundo e não abria nem mesmo suas correspondências,
assim não era de seu conhecimento o fato de que impostos atrasados de sua
residência estavam sendo cobrados. Ela só descobre que está para ser despejada
quando a polícia já está batendo a sua porta reivindicando sua saída. Na
realidade, os impostos eram indevidos por serem tributações exclusivas para
comércios, mas como ela não recorreu a casa que herdou dos pais já havia sido levada
à leilão pela prefeitura. Sem dinheiro e para onde ir a situação da jovem acaba
comovendo Lester Burdon (Ron Eldard), policial que ironicamente lhe comunicou
sobre o despejo. Ele então tenta ajudá-la a sobreviver em um abrigo provisório
e rever o processo na justiça, mas a convivência acaba os aproximando além de
uma pura amizade, mesmo ele sendo casado e com filhos pequenos.
Paralelamente as cenas que mostram o sofrimento de
Kathy também ficamos conhecendo a contraparte do caso da venda do imóvel.
Massoud Amir Behrani (Ben Kingsley) é um ex-coronel da Força Aérea Iraquiana
que foi expulso de seu país natal por conflitos políticos e partiu para os EUA
com o objetivo de manter um padrão de vida semelhante para sua esposa Nadi
(Shohreh Aghdashloo) e o filho adolescente Ismael (Jonathan Ahdout), mas as
coisas não são tão fáceis como parecia, ainda mais para um imigrante de um país
que parece viver um eterno conflito com os ianques. Sua antiga patente não significa nada em solo
americano e por isso ele se divide entre dois empregos comuns. De dia é um
pavimentador de estradas e a noite é caixa de uma loja de conveniências.
Vivendo de aparências, inclusive para conseguir um bom casamento para a filha
mais velha, Behrani tem a grande chance de recuperar seu padrão de vida e
finalmente se sentir respeitado em seu novo país quando vê no jornal o anúncio
de uma confortável e tradicional casa perto da praia sendo leiloada a um preço
muito menor que o mercado ofereceria, justamente a residência de Kathy. Ele
junta todas as suas economias e realiza a compra, já prevendo fazer algumas
melhorias nela para futuramente vendê-la por um preço até quatro vezes maior
que o que desembolsou, assim finalmente chegando ao patamar de vida que
almejava. Só o fato de morar nela nesse momento já lhe traria respeito diante
da sociedade que ele julgava lhe olhar como um estranho ou alguém inferior. Enquanto
isso, Kathy está vivendo dentro de seu velho carro e com a ajuda de Lester e da
advogada Connie Walsh (Frances Fisher) consegue provas de que a prefeitura
errou ao efetuar cobranças indevidas, mas só teria seu imóvel de volta caso o
atual morador aceitasse revendê-la pelo mesmo preço que a adquiriu no leilão.
Então começa um intenso conflito psicológico e emocional entre as partes que
leva a consequências inacreditáveis. Ela quer sua casa de volta por questão de
justiça e por ser o único bem material de valor que teria para seguir sua vida
já tão desestruturada. Já ele quer ficar com o imóvel por orgulho e por também
ver a residência como sua única fonte de lucro. Embora siga um rito
relativamente lento, Perelman consegue envolver totalmente o espectador com uma
história sem maniqueísmos. Não existe lado do bem ou do mal, mocinho ou vilão.
Os conflitos sempre possuem ao menos dois lados a serem analisados, cada qual
com suas justificativas, algumas plausíveis e outras sem razão, mas fazer
qualquer uma das partes compreenderem seus equívocos na questão não é nada
fácil. Ceder então...
Entre objetivos reais como a areia que pode ser tocada
ou emotivos como a névoa que pode transmitir a sensação de vazio, os dois
personagens estão no mesmo barco de certa forma, mas a realidade vivida por
Kathy pode parecer mais dura. Sem dinheiro, emprego, família e, o principal,
objetivos de vida, seu cotidiano é mais fácil de tocar o espectador, mas também
é possível compreender a insatisfação de Behrani. Apesar de ter a companhia e o
carinho da esposa e do filho e da possibilidade de ter suas economias de volta
em troca da casa, suas chances de voltar a ter um padrão de vida semelhante ao
atual são nulas e consequentemente ele seria mais uma vez o imigrante que veio
para pegar o emprego de um americano e que deveria abaixar a cabeça para tudo e
para todos. Dessa forma, a cada nova cena temos uma surpresa. Ora estamos do
lado de um personagem, ora do outro, mas curiosamente não conseguimos sentir
raiva de nenhum deles, no máximo um certo incômodo vez ou outra devido a certas
atitudes que tomam. Nem mesmo as várias vezes que Kathy intercepta o caminho de
Behrani e seus familiares conseguem transformá-la numa chata, pois suas
motivações são críveis e uma forma de demonstrar rebeldia contra injustiças,
desejo provavelmente inerente a população mundial. Com um conflito de alcance
universal, Casa de Areia e Névoa é uma daquelas jóias raras que concorrem
a muitos prêmios, mas o tempo infelizmente procura apagar. Olhando as listas de
premiações da época, praticamente o longa é onipresente em todas elas, mas é
curioso que não foi uma produção que causou furor. Contudo, além de um
excelente trabalho de direção e um roteiro complexo, mas perfeitamente
apreciável pelos mais variados tipos de públicos (desde que preparados para
fortes emoções), o longa obviamente merece destaque por seu elenco. Connelly e
Kingsley protagonizam verdadeiros duelos de titãs. Ambos oscarizados em outras
ocasiões, os dois brigam em cena de igual para igual e é difícil dizer qual o
melhor momento de cada um. Todas as cenas deles são perfeitas. O eterno Gandhi
já não tinha mais que provar que tem talento, mas para a sua parceira
certamente este trabalho foi essencial para comprovar que não é apenas um
rostinho bonito. Os coadjuvantes também não estão aqui simplesmente para encher
linguiça. Conforme a narrativa encaminha-se para seu final, Lester, Nadi e
Ismael têm participações essenciais para os desfechos dos protagonistas. Com um
visual melancólico que combina com a proposta do texto, principalmente nas
cenas noturnas com a casa envolta em névoa, este trabalho é perfeito para quem
gosta de filmes que realmente tenham conteúdo, daqueles que não fogem de sua
memória facilmente. Mesmo com um final extremamente amargo, é difícil não ficar
com um gostinho de quero mais. Palmas para Perelman que realizou uma obra que
em resumo pode parecer simples, mas a forma como é conduzida vale por muitos
filmes tamanha sua perspicácia em condensar em cerca de duas horas tantos acontecimentos
e emoções, deixando o drama prevalecer, mas sempre com um leve suspense no ar
que deixa o espectador na curiosidade de saber qual será o desfecho de um
conflito aparentemente a toa, mas visto com olhar mais intimista difícil de
julgar.
Drama - 126 min - 2003
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