segunda-feira, 1 de janeiro de 2018

SHAKESPEARE APAIXONADO

NOTA 9,0

Mesclando ficção e fatos reais,
longa preenche todos os requisitos
de um grande clássico e surpreende
com uma bem humorada homenagem
William Shakespeare é sem dúvidas o autor mais analisado e discutido de toda a História, assim como também suas obras são recordistas em adaptações ou como inspiração para filmes, peças de teatro, novelas, livros e uma infinidade de outros produtos culturais. Todo seu histórico profissional já foi exaustivamente dissecado, mas curiosamente sua vida pessoal continua envolta a especulações. Historiadores há muito tempo desistiram de procurar pistas para montar o quebra-cabeças da intimidade do escritor, assim o que sabemos não passam de suposições que alimentam a aura de mistério em torno de seu nome. Há quem chegue a afirmar que ele não teria escrito nenhum livro, apenas assumia a autoria de manuscritos de um nobre que preferia ficar incógnito. De todas as fases de sua vida, a que é mais intrigante compreende o período de 1585, quando deixou sua residência em Stratford-upon-avon, e 1592 quando ressurgiu em Londres escrevendo peças para companhias teatrais. Durante esses anos que sumiu do mapa ninguém sabe ao certo o que lhe aconteceu, afinal na época ele ainda não era famoso. Como figura célebre que se tornou, era questão de tempo para que o dramaturgo ocupasse a posição de personagem, contudo o primeiro filme a tentar tal ousadia surpreendentemente não é uma cinebiografia, muito menos um projeto lacrimoso. Shakespeare Apaixonado é uma divertida e criativa imersão na fantasia de preencher as citadas lacunas de sua trajetória que precederam sua consagração. À primeira vista, é a parte técnica que chama a atenção com uma caprichada reconstituição de época, figurinos deslumbrantes, trilha sonora deliciosa, fotografia que faz cada take parecer uma bela pintura entre tantos outros predicados, porém, a obra tem muito mais a oferecer com seu refinado texto repleto de referências às obras do autor, mas nada que impeça um leigo no assunto de se emocionar e se divertir. O roteiro de Marc Norman e Tom Stoppard apresenta o homenageado como um jovem escritor desprovido de recursos financeiros, mas dotado de muitas ambições e espírito inventivo. Com seu charme e beleza (embora os estudos indiquem que o autor espantava por sua feiúra), o papel caiu nas mãos de Joseph Fiennes, que adota um estilo a la Don Juan para humanizar o personagem que passa noitadas enfornado em tavernas bebendo todas e cortejando mulheres. Há justificativas. Com poucas virtudes e muitos desvios de caráter, o rapaz também está passando por um período de bloqueio criativo.

O Sol parece lhe voltar a brilhar quando recebe a proposta de Philip Henslowe (Geoffrey Rush), um endividado investidor que em uma última tentativa de impedir que seu teatro vá a falência lhe encomenda uma peça, uma comédia intitulada "Romeu e Ethel, a Filha do Pirata". Todavia, por conta de sua falta de inspiração, o roteiro do projeto vai sendo escrito aos poucos. Conforme o andamento dos ensaios, o texto vai sendo modificado regularmente e ganha outro rumo quando Will (como gosta de ser chamado) conhece e se apaixona perdidamente por Viola De Lesseps (Gwyneth Paltrow), mas viver esse amor é praticamente impossível já que ela além de ter sangue nobre também já está comprometida com o Lorde Wessex (Colin Firth). O impasse para esta situação só poderia ser resolvido por ninguém menos que a Rainha Elizabeth (Judi Dench), ela própria uma apreciadora das artes cênicas que poderia inclinar-se a ajudar o dramaturgo caso ele lhe apresentasse uma peça que conseguisse a proeza de transmitir a verdadeira natureza do amor. Assim, das próprias experiências e dificuldades com este episódio amoroso, o escritor tem sua inspiração ressuscitada e assim começa a esboçar o que viria a ser o seu maior feito literário, justamente o trágico romance envolvendo Romeu e Julieta, jovens membros de famílias rivais que se apaixonam perdidamente a ponto de cometerem um ato insano para ficarem juntos. A peça só viria a ser encenada pela primeira vez dois anos após Will retornar a Inglaterra. O longa acompanha todo o desenvolvimento da peça através dos ensaios e se o texto não era exatamente para se gargalhar, homens travestidos involuntariamente se incumbiam de injetar humor já que na época as mulheres eram proibidas de atuarem. Viola, que adorava teatro e uma romântica por natureza, sonhava em ser atriz para poder recitar poemas de amor e quando sabe dos testes de elenco não se acanha em trocar seus vestidos por calças e casacas. Sem saber inicialmente de quem se tratava, Will sente-se estranhamente atraído pelo jovem ator que declama seus versos com desenvoltura e sentimentalismo, mas não tarda a descobrir sua real identidade. Essa é a forma como encontram para namorar. Durante os ensaios, seja nas coxias ou até mesmo na frente dos outros colaboradores, o casal troca olhares, carícias e até se beijam, mesmo com ela vestida de homem. Aos olhos embasbacados dos demais, a desculpa era sempre tudo pela arte. Curiosamente, acabamos tendo a sensação que temos pouco de Shakespeare no filme. Joseph, irmão mais novo de Ralph Fiennes, é talentoso, tem presença, mas parece que o texto em sí não beneficia seu personagem que a certa altura passa a agir em função de sua amada. Desde a primeira aparição Viola rouba para si as atenções, embora as divida com um elenco talentosíssimo. Muitos nomes hoje famosos e premiados tiveram aqui a oportunidade de reconhecimento por público e crítica. Tom Wilkinson, Imelda Stauton e Ben Affleck (único deslocado, praticamente sem função na trama) são alguns deles. Rupert Everett, na época em evidência por O Casamento do Meu Melhor Amigo, surge como o escritor Christopher Marlowe, um elemento a mais para abordar que desde aquela época havia concorrência no show business e autores não tinham suas obras respeitadas por diretores e produtores que somente visavam lucros. Tanto tempo se passou e nada mudou, só piorou.

Esse era apenas o quarto longa dirigido por John Madden que arrebatou dezenas de prêmios ao redor do mundo, mas teve sua trajetória complicada justamente quando chegou naquele que é considerado o maior evento da indústria cinematográfica. Na festa do Oscar, apesar de toda bagagem de troféus e menções honrosas, a produção era considerada o azarão já que estava na disputa com obras de forte apelo dramático e histórico. Recordista de indicações no ano de 1999, concorrendo em treze categorias, contrariando expectativas a fita faturou sete delas, incluindo Melhor Filme e Melhor Atriz para Paltrow, fato que deixou um gostinho amargo para os brasileiros já que Fernanda Montenegro estava no páreo com sua irretocável e tocante interpretação em Central do Brasil. Nossa querida dama da dramaturgia realmente teve um desempenho superior, mas sabemos como funciona Hollywood. Jamais premiariam uma atriz que não esboçasse interesse de atuar no cinema americano. A italiana Sophia Loren e a francesa Marion Cotillard, por exemplo, venceram utilizando seus próprios idiomas em cena, mas pontualmente participam de produções ianques.  Assim Paltrow acabou sendo agraciada com a estatueta por ser uma jovem em ascensão, o prêmio serviria para consolidar sua carreira, mas o efeito foi contrário. Viola é uma personagem bem interessante, flertando com a doçura e a determinação, mas parecia um perfil apagadinho diante das outras concorrentes, todas com personagem densos e calcados no drama. Paltrow, com uma interpretação leve e que exala frescor, era o patinho feio da turma. O resultado é que a atriz saiu da festa com fama de protegida e seus trabalhos seguintes sentiram o peso da crítica, um fantasma que ainda a persegue, embora pareça ter encontrado seu espaço no cinema alternativo. Shakespeare Apaixonado como um todo saiu chamuscado desta história. Sabemos que as produções com temáticas mais sérias e pesadas são o xodó das premiações e o trabalho de Madden conseguiu quebrar um jejum de mais de duas décadas. Até então a última comédia a faturar o Oscar era Noivo Neurótico, Noiva Nervosa. Toda essa publicidade negativa acabou ofuscando o real brilho da obra que ainda é desconhecida por muitos por puro preconceito. Abordando a clássica redenção através do amor, eis um trabalho que representa o que esperamos de um legítimo Melhor Filme: texto excelente, interpretações em sua maioria vigorosas, tecnicamente impecável e adornado pela aura de um épico. Pense nos últimos vencedores da categoria principal do Oscar, que acumulam até mesmo dois ou três troféus apenas, e reconsidere. Serão eles mesmos os melhores de seus respectivos anos? Para começar, é difícil até lembrar dos seus títulos.

Vencedor do Oscar de filme, atriz (Gwyneth Paltrow), atriz coadjuvante (Judi Dench), roteiro original, trilha sonora, direção de arte e figurino

Comédia romântica - 122 min - 1998

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