domingo, 10 de maio de 2020

A CIDADE DAS CRIANÇAS


Nota 6 Mescla de aventura e comédia francesa é boa opção familiar para fugir da mesmice


É tão raro nos depararmos com produções infantis fora do circuito Hollywood que quando temos a oportunidade de assistir a algo do tipo não devemos desperdiçar a chance. Sim há muita coisa boa entre desenhos, aventuras e comédias voltadas ao público infanto-juvenil produzida fora do território americano, mas infelizmente elas ainda são distribuídas na base do conta-gotas fora de seus países de origem. Com menos pressão em faturar horrores de dinheiro, tais filmes geralmente são bem superiores aos que estamos acostumados a ofertar às nossas crianças e um bom exemplo é A Cidade das Crianças, uma deliciosa mistura de humor e aventura na qual um grupo de menores finge ser composto de adultos, mas no fundo cada um deles ainda guarda a ingenuidade e a fantasia inerente as suas faixas etárias. Baseado no livro "Timpetill: Die Stadt Ohne Eltern", de Henry Winterfeld lançado em 1937, a trama roteirizada por Fabrice Roger-Lacan, Nicolas Peufaillit e pelo também diretor Nicolas Bary se passa no pequeno vilarejo de Timpelbach, um lugar onde as crianças literalmente mandam e desmandam o quanto querem e não há pai, professor ou autoridade que consiga controlá-los. 

Numa tentativa desesperada de colocar um ponto final neste caos, os adultos se unem e armam um plano para pregar uma peça na criançada a fim de provar a eles que a hierarquia da obediência é uma necessidade. Certa manhã bem cedinho todos sairiam da cidade e iriam passar o restante do dia acampados em uma região afastada, mas voltariam ao escurecer. Thomas (Leo Legrand), talvez por ser um dos mais ajuizados de toda gurizada, é informado por seu tio deste plano e promete guardar segredo até todos retornarem. E assim, certa manhã as crianças tomam o maior susto ao ver o vilarejo deserto, mas não demora muito para que todos passem a festejar esta liberdade conquistada como num passe de mágica. A noite chega e nenhum dos sumidos retorna, assim aumentando a euforia de todos, menos de Thomas, é claro. Todavia, essa vida sem regras, sem hora para almoçar, estudar ou tomar banho, acaba se tornando um problema, o que implica em o grupo se organizar tal qual uma sociedade comum. Assim eles passam a tomar os lugares dos adultos como, por exemplo, no atendimento do restaurante e a ocupar as vagas existentes na prefeitura.


As coisas se complicam quando surge uma ruptura entre eles: o grupo dos que defendem a procura para trazer os pais de volta e aqueles que desejam continuar vivendo sob suas próprias leis, ou melhor, sob a batuta de um líder indisciplinado. O arteiro e metido a valentão Oscar (Baptiste Betoulaud), com toda sua lábia, consegue reunir um grupo de amigos que enxergam com positivismo a ausência de qualquer adulto por perto e automaticamente eles declaram uma guerra contra a turma que se sente desamparada liderada por Thomas e Marianne (Adèle Exarchopoulos), que na medida do possível tentam organizar o restante das crianças de forma mais ajuizada e ajudar a fazê-los a enxergar os pontos negativos da realidade. E assim todos no vilarejo têm suas personalidades e habilidades colocadas em xeque para conseguirem sobreviver como pequenos adultos e a briga entre as “gangues” rivais cada vez se torna mais acirrada. 

De forma muito agradável vamos acompanhando o amadurecimento forçado dessa turminha, mas por trás de todo colorido das imagens e de alguns bons momentos de diversão propostos, o diretor Bary tinha muito mais a dizer. Na realidade, ele propõe uma reflexão a partir de uma metáfora. A forma como se comportam os habitantes mirins de Timpelbach na ausência de superiores demonstra nada mais que um reflexo da conduta de seus próprios pais, diga-se de passagem, repetindo muito mais seus erros que seus acertos. Por exemplo, o excesso de violência e autoritarismo de Oscar é algo que ele carrega de suas experiências familiares, vícios que infelizmente o levam a um ato de extrema crueldade. Aliás, o cineasta ousa ao mostrar menores de idade portando armas perigosas e duelando, cenas dentro do contexto da trama, mas ao mesmo que fogem um pouco do tom ingênuo adotado até então. 


E os pais nisso tudo? Bem, esse é o maior dos pecados da produção. Enquanto estavam aproveitando um dia no campo, os adultos acabam sendo surpreendidos por um grupo de soldados comandados pelo almirante Igor (Gérard Depardieu), com cara de poucos amigos, são presos por pouco tempo e é só isso, não há dramaticidade de nível algum. Bary infelizmente desperdiça um bom gancho narrativo e o talento de um grande ator francês, mas tirando este pequeno defeito A Cidade das Crianças é uma opção deliciosa e com um requinte de produção incrível. Impossível não se sentir fazendo parte de Timpelbach, a cidade visualmente dos sonhos de qualquer criança, e porque não se imaginar no lugar de qualquer um de seus habitantes afinal quem nunca sonhou em viver sem precisar se preocupar com as horas ou obrigações. No faz-de-conta tudo é possível, mas na realidade o equilíbrio com um mínimo de ordem é imprescindível. E como tem gente precisando dessa lição de moral hoje em dia...

Aventura - 95 min - 2008

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