sábado, 6 de junho de 2020

O NEVOEIRO


Nota 9 Tolerância, fanatismo religioso e instinto de sobrevivência diante de uma situação limite


Stephen King é praticamente uma grife cinematográfica. Muitas de suas obras, geralmente ficções ligadas aos gêneros terror e suspense, já foram adaptadas para as telonas, mas nem sempre de forma bem sucedidas. Febre literária nas décadas de 1980 e 1990, nos últimos anos infelizmente o autor não tem tido sorte ao ceder os direitos de seus livros para adaptações e até a mídia já está mais fria em relação ao seu nome. Sendo assim, um bom projeto com sua assinatura nos créditos praticamente passou em brancas nuvens. Podemos dizer que O Nevoeiro é um filme B com categoria. O diretor e roteirista Frank Darabont, que já havia adaptado Um Sonho de Liberdade e À Espera de Um Milagre, obras de apelo dramático de King, desta vez recorreu a um conto que foi publicado no Brasil no livro "Tripulação de Esqueletos" e arrancou elogios dos poucos que assistiram. Mas sempre há tempo para corrigir injustiças. Bem, nem sempre como fica comprovado na surpreendente conclusão deste suspense que termina melhor que o próprio conto que o originou. 

A trama é desenvolvida quase que totalmente dentro de um único cenário, um supermercado, local onde um grupo de pessoas se refugia de um estranho e gigantesco nevoeiro. O problema é que tal efeito, proveniente de uma tempestade, esconde bizarras criaturas que parecem querer exterminar a humanidade. David Drayton (Thomas Jane) é um dos enclausurados no local junto com o filho Billy (Nathan Gamble) e que acaba por liderar os planos de fuga e de enfrentar a névoa, porém, seu instinto de herói bate de frente com as ideias da Sra. Carmody (Marcia Gay Harden), uma fanática religiosa com discursos apocalípticos que acaba por fazer a cabeça de muitos e a ajudar a aumentar o pânico. Dessa forma, uma verdadeira guerra é instalada dentro daquele espaço claustrofóbico entre as pessoas que desejam lutar pela sobrevivência e aqueles que simplesmente aceitam a ideia de morrer acreditando que essa é a vontade de Deus e não se pode contrariá-la. É justamente nesta inversão do medo que reside a força desta produção. O que amedronta mais está dentro ou fora do mercado? Deixando os monstros como coadjuvantes, Darabont acerta ao jogar o foco em um estudo sociológico e psicológico no qual acompanhamos a degradação do ser humano passo a passo conforme o medo do desconhecido toma conta, ainda mais quando não há para onde ir. Claro que algumas situações provam que enfrentar o nevoeiro é arriscado, mas o que mexe mesmo com os nervos é o caos dentro do mercado, afinal não há como fugir daquele espaço e há dúvidas se todos lá dentro são confiáveis. 


Desde o início, o roteiro prende a atenção com situações bem alinhavadas e mesmo quando os monstros surgem em meio a névoa o filme não descamba para situações risíveis. Darabont não nomeia um ou dois personagens para serem protagonistas ou para realizar o velho duelo do mocinho versus vilão, optando por criar grupos distintos de pessoas sem se preocupar em lapidar seus passados, mas obviamente cada um deles acaba tendo um líder natural. Sabendo o mínimo possível sobre eles, acompanhar a narrativa torna-se ainda mais instigante, pois o inesperado pode acontecer da convivência de pessoas tão diferentes e a cada minuto a tensão aumenta. Pessoas corajosas, patéticas, frágeis, crianças, jovens e idosos. Temos um verdadeiro painel social para analisarmos das mais diversas formas como os seres humanos enfrentam o medo, mas a única certeza é que todos estão vulneráveis. Liderando o elenco está Jane que ganha sua grande chance de provar que pode ser o carro-chefe de um filme e a aproveita muito bem enquanto Harden afirma mais uma vez seu poder hipnotizante mesmo em papéis secundários, categoria na qual se destaca há tempos. Seu personagem totalmente crível certamente deve causar a ira de fanáticos religiosos seja por considerarem uma interpretação caricata ou por a certa altura a beata ser alçada ao posto de vilã.

Nos últimos anos tem se tornado frequentes os filmes que enfocam o extermínio da humanidade com narrativas coerentes e alarmantes que colocam o comportamento humano como principal vilão seja qual for o fator desencadeante do estado de caos. O conto de King, embora escrito em meados dos anos 1980, já trazia elementos que nos remetiam a tal ideia e seu texto foi potencializado pelas inserções de Darabont. Mexer com religião é sempre uma empreitada espinhosa, mas o cineasta é fiel ao conto e não se acanha a escrever diálogos que induzem as pessoas a acreditar que a aparição de misteriosos tentáculos e aves que parecem pré-históricas são nada mais nada menos que castigos divinos aos pecados dos homens. Em contrapartida, na boca de outros personagens as críticas à religião correm soltas e sobra até para a área política e de tecnologia, afinal nenhum poderoso poderia decretar o fim do pânico neste caso e até a arma mais sofisticada não adiantaria para derrotar um inimigo desconhecido. Por outro lado, na hora do desespero um simples revólver apontado para um ser humano insano pode ser a salvação ou piorar tudo. A essas alturas, a insanidade já tomou conta de todos e fica difícil distinguir quem está certo ou errado.  


Darabont acaba por prestar uma homenagem ao escritor H. P. Lovecraft, um exímio pesquisador a respeito dos efeitos do sobrenatural na mente humana, cujos trabalhos influenciaram diretamente o estilo de King. Mantendo os elementos tradicionais das narrativas do autor, como a cidade pequena e aparentemente pacata do interior que é sacudida por algo inexplicável, o cineasta constrói uma narrativa com pouquíssimos deslizes e flertando com o estilo trash e o cabeça de fazer cinema. O Nevoeiro acerta praticamente em tudo e só por sua conclusão amarga e impactante merecia figurar entre os melhores títulos de suspense, porém, sua fraca divulgação e apelo junto ao público pode ser justificada por ter sido lançado poucos anos depois do pavoroso A Névoa, remake do cult A Bruma Assassina, do diretor John Carpenter, que por sua vez certamente tem um quê de inspiração no mesmo conto de King. Não a toa o cineasta, que se especializou neste tipo de filme-catástrofe, recebe uma ligeira homenagem na obra. Logo no início é possível observar rapidamente na casa de Drayton uma imagem que remete ao pôster de um de seus mais famosos filmes, O Enigma de Outro Mundo, o que para bom cinéfilo já é uma dica do que está por vir.

Suspense - 126 min - 2007

Leia também a crítica de:

A NOITE DOS MORTOS-VIVOS (1990)

Nenhum comentário: