quinta-feira, 24 de março de 2022

DESEJOS E TRAIÇÕES


Nota 6 Reencontro de irmãos poderia render mais, mas obra é prejudicada por estrutura teatral


Roteiros com temáticas que abordam famílias problemáticas são as matérias-primas preferidas dos cineastas independentes que encontram neles possibilidades de trabalharem com questões psicológicas ou simples fatos cotidianos sem a necessidade de se preocupar em criar finais apoteóticos ou situações impactantes. Quem curte esse tipo de produção já sabe o que vai encontrar. Geralmente são obras que deixam pontas soltas para instigar o espectador a refletir sobre os assuntos propostos, mas nem sempre eles acertam em cheio o seu emocional. Por exemplo, talvez quem é filho único e viveu cercado de mimos não se envolva com os conflitos apresentados em Desejos e Traições, drama basicamente estruturado na reunião de quatro irmãos que quando adultos veem a necessidade de tentar resolver assuntos do passado a partir de situações do presente que os colocam a debater ideias, comportamentos e sonhos desfeitos. O roteiro de Richard Alfieri baseia-se em uma peça de sua própria autoria, "The Sisters", e tem como ponto de partida uma festa surpresa para Irene (Erika Christensen), a caçula da família Prior.

O patriarca do clã era um dos mais importantes professores de uma conceituada universidade e seu legado é levado adiante por alguns de seus alunos e admiradores. Mesmo já falecido a algum tempo, seus filhos tocaram suas vidas também mantendo ligações estreitas com a faculdade, todos se formaram lá em profissões distintas, assim os festejos do aniversário da moça irão acontecer em uma das salas da instituição, mas o ponto ápice da festa acontece antes mesmo de Irene chegar. Suas irmãs mais velhas não perdem a oportunidade de discutirem. Olga (Mary Stuart Masterson) é mais séria, solteira e assumiu um papel masculino na família após a morte do pai. Já Marcia (Maria Bello) é extrovertida, casada com o psicólogo Harry Glass (Steven Culp), também ex-aluno da universidade, mas tem o grave defeito de falar o que lhe vem a cabeça sem pensar nas consequências, assim vive trocando farpas com Olga, mas com a caçula estranhamente adotou uma postura protetora, assim Irene cresceu educada por falsos valores moralistas que acreditava serem herança da educação que o pai deixou aos outros filhos já que ela era muito novinha quando ele veio a falecer. Veremos mais a frente que o passado desta família tem seus segredos obscuros.


Andrew (Alessandro Nivola), formado em música, é o único filho homem da família. Não temos detalhes sobre seu passado ao longo da narrativa, mas alguns comentários de Marcia nos levam a crer que ele sempre foi um rapaz extremamente carente e não pensou duas vezes antes de aceitar a atenção e os afagos de Nancy Pecket (Elizabeth Banks), uma bela jovem que claramente tem um perfil oposto ao do noivo. Ele parece introvertido e sério enquanto ela esbanja simpatia e não tem papas na língua, assim também vive as turras com Marcia, esta que faz questão de ressaltar que a moça, avessa aos estudos, foi atraída até a universidade pelas opções de paquera, deu a sorte de encontrar seu irmão e até insinua que ela o trai constantemente. Para rebater as alfinetadas, Nancy diz que Marcia jamais poderia ser mãe porque é tão egoísta que seria capaz de machucar os próprios filhos para defender seus interesses. Até Andrew acusa a irmã de não ser um modelo de esposa perfeita e que há anos faz Harry de bobo simplesmente para poder usufruir da vida de luxos que ele lhe proporciona. As vozes se exaltam, os diálogos começam a ficar acelerados e as ofensas correm solta nessa sequência pré-festa, tudo sendo observado por alguns convidados.

O Dr. Chebrin (Rip Torn), chefe de um dos departamentos da universidade, é fanático por notícias trágicas e discretamente deve torcer para uma fatalidade acontecer nesta reunião, só assim para explicar implicitamente sua presença já que não agrega nada a trama. O acanhado professor de filosofia David Turzin (Chris O’Donnell) e o de ciências políticas, o sarcástico Gary Sokol (Eric McCormack), aguardam ansiosos a chegada da aniversariante, pois ambos nutrem sentimentos por ela que vão além da simples amizade. Por fim, todos são surpreendidos com a visita de Vincent Antonelli (Tony Goldwyn), que foi professor assistente do Sr. Prior. O diretor Arthur Allan Seidelman conduz com eficiência o primeiro ato praticamente todo centrado dentro um único espaço e com todos os personagens interagindo, uma forma de envolver o espectador como se estivesse fazendo parte desta reunião. Todos apresentados então queremos ver ação e é justamente nesse quesito que o filme falha. Praticamente nada acontece de concreto e somente faltando menos de dez minutos para acabar é que o enredo tem uma sequência mais vibrante. Todo o resto do tempo é calcado em longos diálogos que de fato possuem conteúdo, mas quando paramos para refletir sentimos que ficou faltando algo, algum elemento que nos fizesse sentir realmente fazendo parte das discussões que vem a seguir. Muitos segredos vem a tona e jogam por terra o semblante de que os Prior são uma família modelo.


Contar detalhadamente o que acontece é tirar o charme de Desejos e Traições, produção cujo trunfo é justamente prender a atenção do espectador oferecendo-lhe pouco a pouco dicas sobre o comportamento e ações de tipos comuns vivenciando problemas corriqueiros envolvendo escolhas, solidariedade, rancores e vontades. Seidelman tem os méritos de conseguir arrancar interpretações muito naturais de seu elenco, com destaque para o quarteto de irmãos e para Banks, coadjuvante que consegue se posicionar com facilidade no time de protagonistas. Como dito logo no início, esta produção é do tipo que precisa se refletir a respeito para tirar conclusões. Uma avaliação precipitada certamente seria desfavorável à obra. É certo que o elenco masculino é desperdiçado e muitos bons ganchos são apenas citados ou insinuados, mas no geral o longa conquista seus objetos de colocar o espectador para pensar. Quem conseguir vencer o desafio de tolerar diálogos intensos e em grande quantidade, mesmo com a vontade de algumas vezes desistir de acompanhar a trama, certamente se sentirá inquieto ao final. Fale bem ou fale mal, mas fale de mim. Você poderá simplesmente dizer cobras e lagartos sobre a produção ou imaginar quais caminhos você daria as situações que julga terem ficado mal resolvidas ou que foram jogadas fora.

Drama - 113 min - 2005 

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