quinta-feira, 13 de janeiro de 2022

MARIA CHEIA DE GRAÇA


Nota 8 Mazelas sociais e econômicas levam pessoas humildes e inocentes ao tráfico de drogas


Um título chamativo, bem como um material publicitário criativo, são itens que podem determinar o sucesso de um filme, mas nem sempre as equipes de criação ou publicitária são felizes em suas escolhas. Ainda bem que há gente inteligente nesse meio que ainda consegue casar a ideia do produto perfeitamente com aquela imagem que deve se eternizar como marca da produção. Um exemplo digno de elogios é o trabalho realizado com Maria Cheia de Graça. Sozinho o título parece uma menção a uma obra religiosa, mas quando o atrelamos a imagem de uma jovem de cabeça erguida como se fosse receber uma hóstia a coisa muda de figura completamente. Recebendo na realidade uma cápsula de tamanho considerável e recheada de drogas, tal imagem é a síntese perfeita do enredo deste filme dirigido pelo então estreante Joshua Marston, uma ousadia que causou frisson e até chocou algumas pessoas. Muitos consideram tal campanha de marketing uma heresia sem tamanho, mas não há como negar o impacto que causa. E a propaganda não é gratuita, pelo contrário, é muito contundente e prepara o espectador para o que irá assistir.

É justamente através do trabalho ilícito de transportar drogas dentro do corpo que a protagonista Maria Alvarez, interpretada pela hispânica Catalina Sandino Moreno, indicada ao Oscar e vencedora do Urso de Prata em Berlim, buscará a redenção. Ela é uma jovem que trabalha em uma região campestre da Colômbia retirando espinhos e folhas de rosas. Como a região basicamente vive do cultivo de plantas, não há muitas esperanças de mudar de vida, mas mesmo assim ela pede demissão por causa dos maus tratos que sofre do patrão. Para tomar tal decisão repentina ela não levou em consideração que era com seu salário que sua família sobrevivia e a situação se complica ao se descobrir grávida de Juan (Wilson Guerrero), um rapaz que não ama e que mal conhece. Durante uma viagem para Bogotá, Maria fica conhecendo mais a fundo o trabalho dos mulas, como são popularmente conhecidos os intermediários do tráfico de drogas. Seduzida pela proposta de lucrar muito, a jovem mente a idade e aceita o trabalho com a cara e a coragem praticamente ignorando os riscos de sua decisão. Pouco a pouco ela vai sendo instruída para transportar a mercadoria escondida na estômago de forma que ela chegue intacta ao seu destino. Entre os ensinamentos estão dicas de como fazer para expelir as cápsulas sem danos ao material e as formas de agir no aeroporto para não levantar suspeitas. 


É praticamente impossível se manter passivo diante das sequências em que Maria engole as cápsulas recheadas de cocaína. É perceptível o sacrifício de ter que levar na barriga dezenas de pacotes de substâncias ilegais e que soam como verdadeiras bombas dentro do corpo. Se uma cápsula sequer estourar sérias complicações de saúde podem ocorrer podendo levar a pessoa até mesmo a morte. Chegando aos EUA, obviamente é a protagonista que será barrada pelos seguranças e enquanto um dos traficantes entretém a polícia, o restante do grupo desembarca sem maiores problemas e segue para o local de entrega da droga. Esse é apenas um dos obstáculos que Maria terá que vencer em terras norte-americanas. Nas mãos dos bandidos, os intermediários sofrem maus tratos e precisam ficar alguns dias com eles até expelirem todos os pacotes. Nesse ambiente de constante tensão, a adolescente acaba se arrependendo após descobrir que Lucy (Guilied Lopez), outra garota usada como mula, foi violentada e morta depois que um dos embrulhos estourou dentro de sua barriga. A partir deste fato, começa o segundo ato quando Maria e Blanca (Yenny Paola Veja), sua fiel amiga desde a viagem de avião, decidem fugir e ir procurar a família da colega falecida,  mas acabam envolvidas em um emaranhado de mentiras para garantirem abrigo e se livrarem dos bandidos que estão no encalço delas.

O próprio Marston é quem escreveu o roteiro com base em uma pesquisa de campo no Equador e na Colômbia para ver de perto como funciona o esquema de tráfico. Com esta experiência ele pôde comprovar as gritantes diferenças entre os países de primeiro e terceiro mundo quanto as questões sociais, econômicas e políticas, motivos que levam principalmente os povos latinos a buscarem atividades ilícitas para sobreviverem. Visualmente ficam claras as deficiências do território colombiano, porém, o ambiente americano não é retratado de forma muito diferente. Se a sujeira, a pobreza e a tristeza são expostas de forma nua e crua por países abaixo da linha do Equador (o cinema brasileiro também faz questão de vez ou outra reforçar tal visão), no território norte-americano tais mazelas também existem, mas são acobertadas por construções que podem não ser luxuosas, porém, é o sonho de consumo de quem vive em casebres de madeira ou de barro. É justamente a imagem bonita e esplendorosa que a maioria das produções hollywoodianas vende a respeito dos EUA que iludem muitos latinos a buscarem melhores condições de vida por lá, mesmo que o passaporte seja conquistado através de crimes. A maioria faz uma única e arriscada travessia e se fixam por lá conquistando trabalho como empregados domésticos ou no comércio, mas muitos fazem várias vezes a travessia do contrabando acreditando que sempre a sorte estará do lado deles. 


Marston, antes jornalista, conseguiu um resultado disfarçadamente documental. Ele não se entrega ao melodrama e realiza uma obra um tanto realista e com interpretações bastante naturais, o que o credenciou a receber prêmios e reconhecimentos em diversos festivais, honras que também podem ter comprometido a carreira do filme. Devido as altas expectativas depositadas, no final podemos nos sentir insatisfeitos, como se algo faltasse. Espera-se uma obra bem mais violenta e difícil de digerir, mas no conjunto ela não choca tanto, contudo, está longe de ser uma história adocicada. Nem mesmo o falso glamour dos EUA bate ponto aqui, pois o diretor optou por centralizar boa parte das cenas nas regiões menos favorecidas do país, assim reforçando o tom crítico e verídico.  Voltando a ideia exposta no início do texto, o título Maria Cheia de Graça aliado a imagem que se tornou símbolo da produção permitem várias interpretações, desde a coincidência do nome da personagem principal com a de um símbolo religioso até mesmo a dependência das drogas dos povos mais ricos em comparação ao fervor religioso (leia-se catolicismo) tão característico dos latinos. Certamente um trabalho que merece atenção e reflexão, afinal quantas pessoas em todo o mundo já fizeram ou pensam em fazer o mesmo que Maria em busca do famigerado sonho americano da riqueza para todos?

Drama - 101 min - 2004 


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Um comentário:

Gilberto Carlos disse...

Um filme muito comentado sobre o contrabando de drogas. Bom!