Nota 8 Longa é açucarado na medida certa para emocionar e discutir temas sociais e atemporais
Filmes que usam o mundo gastronômico como pano de fundo não são novidades, já existem até estudos aprofundados sobre o assunto, mas cada novo que surge é um sabor diferente que o acompanha e certamente a sensação de aconchego que uma cozinha propicia se repete. É justamente este aspecto tão familiar e tradicional que conquista em Chocolate, um delicioso drama de época que infelizmente não agrada a todos os paladares. Baseada no romance homônimo de Joanne Harris, a trama açucarada que tanto traz felicidade a alguns para outros transmite certo sabor de amargura. Roteirizada por Robert Nelson Jacobs, a história se passa em meados da década de 1950 em um tranquilo e tradicional vilarejo francês. É neste local que Vianne (Juliette Binoche) e sua pequena filha Anouk (Victorie Thivisol) resolvem fixar residência e ninguém poderia imaginar o impacto que este fato teria na antiquada comunidade. A jovem senhora decide abrir uma doceria, uma loja repleta de guloseimas à base de chocolate, mas com um diferencial. A misteriosa habilidade de Vianne em perceber os desejos pessoais de cada freguês e satisfazê-los oferecendo o doce certo para cada momento faz com que os moradores se entreguem às tentações, assim liberando sentimentos reprimidos. Seu segredo é o conhecimento sobre exóticas misturas de ingredientes, como a alquimia entre o chocolate com a pimenta.
Apesar de conquistar alguns paladares, como da amargurada Armande (Judi Dench) e da recatada Josephine (Lena Olin), o trabalho de Vianne é mal visto por muitas pessoas. Os mais conservadores consideram uma ofensa abrir uma loja de doces bem ao lado da igreja. A gula não poderia dividir espaço com a religião e, neste caso em específico, até levar os fiéis a cometerem outros pecados, como o da luxúria. Um dos habitantes que mais ataca a nova moradora é o prefeito Comte de Reynaud (Alfred Molina) que não aceita sua presença na vila por considerá-la uma afronta aos bons costumes (mãe solteira, seus trajes, seu talento encarado com uma espécie de feitiçaria, entre outros preconceitos). A situação de Vianne fica ainda mais complicada quando surge no vilarejo o forasteiro Roux (Johnny Depp), um músico andarilho que faz a doceira se render a seus próprios desejos reprimidos. Os dois ficam muito próximos, mas a vida cigana do rapaz não agrega nada de bom a já mal falada reputação da doceira que revela não ser católica e omitir da filha informações sobre sua paternidade. No fundo, o plot principal da narrativa você já deve ter visto em diversos filmes e novelas. O forasteiro que chega à cidade causa impacto com seu comportamento estranho aos moradores e pouco a pouco vai modificando o cotidiano do local de forma positiva ou negativa, tudo depende de pontos de vistas particulares. Vianne chega trazendo a luz da novidade e a população se divide entre o conservadorismo daqueles que não admitem mudanças e a curiosidade dos que sentem inclinação a experimentar o sabor do prazer de sair da rotina.
Chega a ser reconfortante a ideia de que uma única pessoa com bom coração consiga mudar vidas através de seu trabalho feito com muito esmero e é ainda melhor saber que essa ajuda é propiciada por uma pessoa marginalizada, alguém que teria todos os motivos do mundo para virar as costas aos que a hostilizam. Como uma feiticeira do bem, Vianne mostra-se tranquila quanto aos ataques que sofre e não desiste de seus objetivos, isso até perceber que ela mesma vive apegada a coisas do passado e o quanto é difícil se desvencilhar delas. Binoche mais uma vez nos presenteia com uma interpretação contida e sensível e sabe como poucos dividir as atenções com os coadjuvantes, neste caso essenciais para a construção do drama que cerca a protagonista, destacando-se Dench que equilibra-se entre a sisudez comum a sua personagem e seus momentos de espontaneidade despertados pelos sabores dos quitutes que vira freguesa assídua. Aos poucos, sua Armande consegue se despir suavemente de uma carcaça pesada e adotar uma postura mais positiva perante a vida, fazendo a transição sentimental de forma suave. Brigada há anos com a filha Caroline (Carrie-Anne Moss), ela finalmente toma coragem de tentar uma reaproximação e conquistar o neto Luc (Aurelien Parent Koenig) que até então mal conhecia.
Quem aparentemente deixa a desejar é Depp. Acostumado a interpretações exageradas e cheias de tiques, reforçadas geralmente por figurinos e maquiagens marcantes, aqui ele se apresenta sem afetações ou estereótipos, um tipo comum, meio engessado até, mas correto dentro do perfil e fugindo da figura espalhafatosa de um cigano que geralmente nos é imposta. Vianne e Roux se identificam de imediato, embora não fique latente que existe um real sentimento amoroso entre eles e sim a vontade de se unirem para lutar contra o preconceito e conquistarem seus lugares no mundo. As guloseimas servidas ao longo do filme são usadas como pretexto justamente para os personagens discutirem valores que se encaixam perfeitamente com a atualidade, afinal moralidade, tradições, tolerância e solidariedade são temas que nunca saem de moda e sempre precisam ser discutidos. Tudo isso é servido embebido em um contagiante clima lúdico, saboroso e com imagens de encher os olhos. Embora de origem norte-americana, a produção não esconde suas pretensões de se aproximar ao máximo do estilo europeu e capricha no verniz, marcas registradas do diretor Lasse Hallström. O pequeno vilarejo e o interior das residências dos personagens são ricos em detalhes que ajudam a dar um clima aconchegante e nostálgico, além da belíssima trilha sonora instrumental, pujante e melancólica simultaneamente.
Se o filme tem um belo enredo, boas interpretações e é perfeito plasticamente, qual seria o tal motivo de deixar alguns espectadores frustrados? Chocolate decepcionou muita gente por sua simplicidade que não justificaria diversas indicações a prêmios, inclusive ao Oscar que sempre reserva vagas para o cinema independente emplacar candidatos. Isso é ótimo, mas o problema é que por um bom tempo tal espaço tinha destinatário certo: a produtora Miramax que um ano antes já havia registado sua passagem pelas premiações com Regras da Vida, coincidência ou não também dirigido por Hallström. Seu estilo se encaixava perfeitamente aos propósitos da empresa que ganhou (má) fama por somar mais de uma centena de indicações da Academia de Cinema em um curto espaço de tempo graças a campanhas de marketing fortes e eficientes. O Paciente Inglês, Shakespeare Apaixonado e Chicago são alguns produtos da casa eleitos como melhores filmes em diversas cerimônias, mas mesmo quando não recebia as máximas menções a produtora conseguia ser lembrada em categorias secundárias, assim virando o pesadelo dos concorrentes. Dessa forma, muitos espectadores passaram a ver os produtos com selo da empresa como obras talhadas para ganhar prêmios, sempre utilizando uma fórmula básica que deu certo. Deixando esse preconceito tolo de lado, é preciso admitir que o passeio de Hallström pelo mundo da gastronomia, mais especificamente dos doces, é delicioso, uma fábula tradicional e simplória, mas servida com esmero e elegância ao espectador.
Drama - 122 min - 2000
Um comentário:
bom, quem não ama chocolate, e Chocolate, o filme, é belíssimo desde sua trilha sonora e sua edificante estória, é assistir e se apaixonar... kkkk, como o chocolate...
Postar um comentário