Nota 6 Com tipos problemáticos, comédia cede ao drama conforme as bizarrices tornam-se crônicas
Explorar os dramas e bizarrices de famílias problemáticas tornou-se uma coqueluche em Hollywood, principalmente depois que produções independentes passaram a ter passe livre nas grandes premiações. Estúdios consagrados entraram nessa onda e atores livraram-se de vaidades ou preconceitos para encarnar tipos pouco convencionais. Entre um filme de ação e uma comédia romântica é sempre bom um título alternativo para dar aquele upgrade em seus currículos. Correndo com Tesouras parece uma mescla da crítica explícita contida em Beleza Americana, com a melancolia de Magnólia e ainda generosas doses de elementos pinçados do estilo do diretor Wes Anderson, de Os Excêntricos Tenembauns, ou seja, um filme que promete diversão com conteúdo reflexivo. Roteirizado e dirigido por Ryan Murphy, criador da série de TV "Nip/Tuck" e então estreando nos cinemas, o filme é inspirado na vida do escritor Augusten Burroughs. Quem? Pois é, a falta de informações sobre este ilustre desconhecido pode ser umas das razões para o fracasso do longa baseado no livro de memórias homônimo de sua própria autoria. O jovem ator Joseph Cross vive o protagonista na adolescência. Estamos na década de 1970, tempos de muitos tabus, e o rapaz precisou enfrentar diversas situações escandalosas.
Deirdre (Annette Bening), a mãe do rapaz, nutria o desejo de se tornar uma famosa poetiza, mas só recebia constantes negativas quanto a publicação de seus textos. Suas mudanças bruscas de humor e comportamento pouco convencional atrapalharam seus sonhos e principalmente sua vida particular. Seu marido, Norman (Alec Baldwin), é alcoólatra e displicente com a família, assim Augusten se sentia inseguro dentro da própria casa. Para tentar enfrentar a separação, a aspirante a escritora decide procurar ajuda do Dr. Finch (Brian Cox), um sujeito também um tanto excêntrico e amante inveterado das teorias de Freud. A loucura de Deirdre é tamanha que ela simplesmente decide deixar o filho sob os cuidados do psicólogo e sua estranha família composta pela submissa esposa Agnes (Jill Clayburgh), a sádica e solteirona filha mais velha Hope (Gwyneth Paltrow) e a caçula e descolada Natalie (Evan Rachel Wood) com quem Augusten acaba tendo mais afinidade, mas sua adaptação à família do médico não é muito fácil. Sujeito a visitas irregulares da mãe aos fins de semana, diga-se de passagem, cada vez mais descompensada, e com a ausência do pai, o jovem acaba se reprimindo ainda mais.
Carente de afeto, Augusten acaba se aproximando afetiva e sexualmente de Neil Bookman (Joseph Fiennes), um trintão filho adotivo de Finch e, para variar, também cheio de neuras. Longe do estilo do gay bem resolvido e totalmente independente, agora ele está desesperado para resolver as pendências que tem com o psicólogo que julga tê-lo mantido afastado por anos propositalmente. Para completar o universo bizarro do protagonista, ele ainda descobre que a mãe também é homossexual e parece disposta a assumir a relação com a amiga Fern (Kristin Chenoweth). Embora repleto de tipos estranhos, é bom ficar claro que o filme é uma comédia dramática, sendo que a atmosfera depressiva permeia toda a narrativa, mesmo que lá pelas tantas o Dr. Finch tenha um momento de euforia ao analisar suas fezes e ironicamente se por a prever o futuro naquilo que se esvai pelo esgoto e rapidamente se torna passado. No fundo, a obra tenta explorar a mente de personagens fora do comum, mas exagera nas características degradantes de cada um. Inicialmente, é instigante descobrir quais os problemas deles, mas depois que nos tornamos íntimos a tendência é que o interesse se disperse. A presença de um personagem mais responsável ou não diretamente ligado aos dramas de cada um poderia dar aquela arredondada no enredo, apontar os erros e defeitos deles e quem sabe até propor soluções, mas parece que chafurdar cada vez mais na lama é a sina de todos e nenhum tenta escapar do infortúnio.
Apesar dos exageros, no fundo a narrativa é construída em cima de situações bastante comuns. Separação, homossexualismo, anulação de personalidade, dilemas juvenis e o abismo existente entre muitos pais e filhos. O problema é que Murphy optou por evidenciar o lado mais excêntrico dos personagens e abriu mão de explorá-los humanamente, assim eles parecem unidimensionais e todos estão condicionados aos seus próprios conflitos pouco importando o sofrimento do outro. Essa é uma grande armadilha em que a maioria das produções sobre famílias disfuncionais caem. Estereotipados, muitas vezes não ficam claros os motivos de seus conflitos, mas dicas como o alcoolismo, a depravação ou um repentino apego por algum tipo de crença nos dão a entender que existe algo de errado em suas vidas. O difícil é trabalhar esses elementos sem ser maçante. Se as feridas emocionais são explicadas em detalhes a obra é rotulada de manipuladora de emoções, mas também se são simplesmente jogadas na tela fica a sensação que faltam informações. No livro certamente estes tipos são melhores desenvolvidos, até porque o autor realmente conviveu com essas pessoas e criou algum tipo de vínculo emocional, diferentemente do diretor que os enxerga apenas como peças necessárias para atingir um objetivo, assim trabalha o material de forma mais direcionada.
O humor inicial pouco a pouco vai se esvaindo até culminar em um final melancólico, mas que não chega a ser depressivo visto que o Augusten real surge bem humorado em um rápido take ao lado de seu intérprete na juventude, comprovando que apesar de tudo ele sobreviveu às loucuras de sua família de sangue e também da emprestada. Aliás, sua preocupação com a apagadinha Agnes ironicamente é a trama paralela mais bem trabalhada, quase uma relação de mãe e filho às avessas na qual o jovem com menos experiência de vida ajuda a resgatar a autoestima de uma mulher que se acostumou a ser praticamente invisível. A ideia da adaptação de Correndo com Tesouras precisou de vários anos para ser amadurecida, mas mesmo depois de pronta ficou em quarentena. Apesar da indicação de Bening para o Globo de Ouro, o longa fracassou nos EUA e teve seu lançamento remarcado diversas vezes em outros países. No Brasil chegou a ter estreia marcada, mas no final das contas saiu direto para consumo doméstico. De qualquer forma, a quem aprecia a temática, uma pedida razoável.
Comédia - 121 min - 2006
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