Nota 8 Mesmo datada, obra ainda é tensa e reflexiva criticando o machismo através de uma alegoria
Quando um filme ganha uma refilmagem é comum que as distribuidoras se apressem para colocar a disposição dos consumidores as versões originais, independente de serem ou não as responsáveis pela tal reinvenção ou se o novo trabalho guarda apenas alguns resquícios da fonte em que bebeu. Foi isso que aconteceu, ainda que timidamente, quando foi lançada a comédia Mulheres Perfeitas. Com um elenco encabeçado por Nicole Kidman, esse filme teve passagem rápida pelos cinemas e foi classificado por muitos como uma produção de humor rasteiro ou até mesmo uma bobagem que não vale o tempo perdido para assistir. Bem, talvez muitos passassem a ver esse trabalho com outros olhos ou até mesmo reforçariam as más críticas se conhecessem Esposas em Conflito, longa dos anos 1970 cujo argumento muito interessante foi reaproveitado em sua releitura três décadas mais tarde, porém, com um enfoque completamente diferente. Visualmente a obra é datada e fica visível através das roupas, objetos dos cenários e penteados e nem mesmo o discurso esconde o envelhecimento do filme, mas nada que atrapalhe o público-alvo que certamente busca respirar naftalina através das imagens.
É muito interessante comparar como um mesmo roteiro pôde ter duas leituras tão diferenciadas, sendo que a trama original pouco tem de engraçado, pelo contrário, é um enredo que leva o espectador a refletir sobre questões pertinentes à época, mas ainda polêmicas: o machismo versus a rebeldia à submissão da mulher. O diretor inglês Bryan Forbes criou um misto de ficção científica e suspense inspirado pelo romance homônimo de Ira Levin, o mesmo criador do livro que deu origem ao cultuado O Bebê de Rosemary. A história nos apresenta a um casal que decide deixar a estressante vida na metrópole para ir viver em um subúrbio norte-americano, a cidade de Stepford que parece um sonho. Ruas tranquilas, casas bonitas, bem adornadas e até excessivamente limpas e organizadas. Para completar o cenário para uma família modelo habitar só falta uma esposa bonita, bem arrumada, prendada e que nunca nega um pedido ao marido. Bem, até isso se encontra aos montes nesse verdadeiro recanto feliz. Em meio a esse mundo perfeito a recém-chegada fotógrafa Joanna Eberhart (Katharine Ross) não consegue se encaixar e acha tudo aquilo muito estranho. A mesma opinião compartilha Bobbie Markowe (Paula Prentiss), outra habitante da cidade que não consegue compreender como todas as donas-de-casa parecem seguir um mesmo padrão de vida.
A dupla de estranhas no ninho até tenta se adaptar a esse novo estilo de vida, mas da maneira delas. Fazer novas amizades era impossível, pois as vizinhas estavam sempre ocupadas com o trabalho doméstico e estranhamente satisfeitas, mas elas ainda tentaram fazer algumas reuniões para discutir assuntos sociais e políticos, afinal na época acontecia o auge da liberação feminina, mas somente as duas entusiastas do movimento participavam de fato. Se fosse uma reunião para trocar receitas ou discutir sobre decoração aí sim talvez até faltasse assento para tanta dondoca. Quem insistiu para Joana deixar a agitada Nova York em busca de mais qualidade de vida para ela e seus filhos foi seu próprio marido Walter (Peter Masterson) que parece não se espantar com o comportamento das mulheres da cidade, tampouco com as queixas da esposa que tenta sem sucesso provocar algum tipo de reação ativa em suas vizinhas que se mostram irredutíveis a qualquer mudança em suas rotinas. O Sr. Eberhart está nas nuvens assim como os outros homens do local que costumeiramente se reúnem em uma espécie de clube fechado onde passam horas bebendo e jogando conversa fora enquanto suas esposas estão limpando a casa, engomando roupas e preparando a comida. A tal aura misteriosa da cidade parece não atingi-los, porém, Joanna e Bobbie estão decididas a investigar, ainda mais quando praticamente presenciam a nítida mudança de comportamento de uma das moradoras que da noite para o dia adere aos costumes locais. Logo, o próprio Walter muda seu comportamento tornando-se mal humorado e indelicado, como se a neurose da esposa o perturbasse.
Quem assistiu a reinvenção desta obra lançada em 2004 sabe muito bem qual o segredo de tanta perfeição nesta cidade que aparentemente parou no tempo, mas em certos aspectos é bem avançada. Forbes, com elenco pouco conhecido e recursos financeiros minguados, conduziu sua obra de forma puxada para uma fantasia de terror, com direito a uma surpresa aterradora no final. O argumento hoje em dia pode soar um tanto estapafúrdio, mas para a época era apavorante, tanto que Diane Keaton desistiu de ser a protagonista aconselhada por seu psicanalista que temia pela energia negativa que ronda a história. Tanto o longa-metragem quanto a obra literária que o inspirou foram lançados pouco depois da época de efervescência do feminismo nos anos 1960. A maioria das sociedades, não só as americanas, tinham papeis bem definidos para homens e mulheres ocuparem e elas, por sua vez, tentavam mudar velhos hábitos. Por que necessariamente os homens é que devem sair para trabalhar? Qual o problema do casal ter uma atividade remunerada e dividirem as contas da casa? Se os maridos podem sair para beber, jogar e até flertar com outras mulheres alegando ser da natureza de seu sexo, suas companheiras não poderiam no mínimo ter a liberdade para sair com suas amigas e jogar conversa fora?
Na época do lançamento, o preconceito enraizado ainda mostrava sua força e Esposas em Conflito fracassou nas bilheterias americanas e só ficou conhecido no Brasil graças as inúmeras reprises na TV. Apesar do ineditismo deste trabalho e sua pegada de ficção científica, muito em voga no período, ele acabou despertando reações adversas. As mulheres o acharam machista e os homens consideraram uma obra a favor do feminismo. O roteiro de William Goldman, de Butch Cassidy, atende a essas duas interpretações. É inegável a crítica feita aos maridos que escravizam suas esposas, porém, este mesmo gancho acaba servindo como a realização de uma fantasia masculina, ter em casa uma companheira mil e uma utilidades. A opção pelo tom de comédia para a refilmagem foi considerada um exagero por muitos, mas de fato o filme original tem alguns momentos bem humorados, como na sequência em que uma das personagens tem literalmente um curto-circuito durante uma festa para conseguir uma simples receita, mas por trás do cômico está a tragédia, o elemento de impacto da obra. Será que uma sociedade formada por indivíduos padronizados é inabalável? Sabemos que é preciso compactuar com algumas regras sociais para termos equilíbrio, mas este trabalho extrapola propositalmente os limites do perfeccionismo para dar a sua lição de moral.
Leia também a crítica de:
Nenhum comentário:
Postar um comentário