sábado, 15 de agosto de 2020

CEMITÉRIO MALDITO (1989)


Nota 8 Longa aborda de forma ímpar o impacto da morte na vida de quem fica para viver o luto


Em boa parte de suas obras o escritor Stephen King aborda alguns de seus próprios temores utilizando elementos corriqueiros do cotidiano para incrementar medos inerentes a todas as civilizações, à moda norte-americana é claro. Um baile de adolescentes, um invejável carro ou um hotel isolado pela neve. O autor de diversos best-sellers faz com que o Mal espreite bem de perto suas vítimas como mais uma vez mostra em Cemitério Maldito, cuja adaptação do texto ele próprio se encarregou e a direção fora entregue à Mary Lambert. É um filme ímpar quanto a discussão do impacto da perda de alguém querido na vida daqueles que ficam para viver o luto. O título original, "Pet Sematary", grafado propositalmente errado como se fosse escrito por uma criança, significa "cemitério de bichos de estimação", nada mais relacionável do que uma família ianque tradicional com seu mascote, no caso um gato pertencente à Ellie (revezada pelas gêmeas Beau e Blaze Berdahl) que acaba de se mudar para uma pacata cidadezinha do interior com Rachel (Denise Crosby) e Louis Creed (Dale Midkiff), seus pais, e seu irmão caçula Cage (Miko Hughes). Com uma casa grande e confortável e um sólido emprego como médico da universidade local, o patriarca sente-se realizado em poder propiciar uma boa vida à família, mas as coisas começam a ficar estranhas quando não consegue salvar a vida do estudante Victor Pascow (Brad Greenquist) e o jovem o surpreende voltando a ter um sopro de vida para lhe avisar sobre o perigo que o ronda na nova moradia. 

O doutor se vê novamente em confronto com a morte quando a empregada Missy (Susan Blommaert) se suicida e Churchill, o gato de sua filha, morre atropelado na estrada que fica bem em frente à sua casa que, sem justificativa alguma, não conta com nenhuma cerca ou aparato de proteção, uma das primeiras preocupações que um zeloso pai teria na hora de escolher uma moradia. Relevamos o deslize, pois já antevemos que a casa desprotegida terá ainda uma importância maior na trama visto que logo nos primeiros minutos Cage quase é atropelado, mas é salvo por Jud Crandall (Fred Gwynne), o solitário vizinho que vive na residência em frente cruzando a rodovia. É através dele que Louis toma conhecimento que nos arredores existe um antigo cemitério de animais construído devido a alta incidência de atropelamentos de bichos na região e é lá que Churchill é sepultado. Inesperadamente, logo no dia seguinte, o gato está de volta à casa para alivio dos pais que ainda não haviam contado o que havia acontecido para Ellie, assim eles relevam o estranhamento da situação, contudo, o bichano não é mais o mesmo demonstrando um comportamento bastante agressivo. O vizinho então revela que, além das florestas que guardam o santuário de animais, há também escondido um cemitério indígena que, reza a lenda, é uma terra capaz de ressuscitar almas. Após uma sucessão de misteriosos eventos, os Creed vivenciam uma terrível situação que faz com que Louis recorra mais uma vez ao tal lugar sepulcrário sem pensar nas consequências, uma decisão tomada às pressas que os leva a uma experiência insólita e devastadora. 


Decepcionado com a maioria das adaptações cinematográficas de suas obras, principalmente a do considerado clássico O Iluminado, King tratou de ele próprio fazer as modificações necessárias para transpor a trama do livro para o cinema, assim assumiu os riscos de eliminar personagens importantes, assim como alguns elementos que julgava desnecessários, a fim de construir uma narrativa simples e enxuta. Talvez por isso uma subtrama pareça deslocada apesar de seu potencial assustador. Em flashbacks, ficamos sabendo de um trauma que Rachel carrega. Zelda, curiosamente interpretada pelo ator Andrew Hubatsek devido os produtores não terem encontrado uma atriz suficientemente magra, era irmã bem mais velha da Sra. Creed e sofria de meningite raquidiana, uma doença degenerativa que a deixava com o corpo todo deformado e enfraquecida a ponto de viver vegetando em uma cama. Ela faleceu em um momento que estava sozinha em casa com Rachel, ainda uma criança que, assustada com as reações da irmã a uma convulsão, não soube prestar socorro. As aparições de Zelda, depois também em delírios, são bastante amedrontadoras, mas infelizmente não agregam nada à espinha dorsal do enredo.  O estudante que falece praticamente nas mãos de Louis também reaparece em alguns momentos, porém, sua participação tira um pouco do realismo do conjunto mais calcado no suspense psicológico. Ensanguentado e ferido como quando faleceu, o rapaz é o elemento mais próximo ao tradicional terror de mortos-vivos, temática muito em voga na época. Contudo, outro personagem também voltará da morte de forma bastante assustadora e colocando o restante do elenco no chinelo, mesmo com a pouca idade. Fica a dica.

Com uma trama macabra em mãos, Lambert capricha na concepção de uma atmosfera tenebrosa e aproveita ao máximo a potencialidade dramática do argumento. Os diálogos que versam sobre a morte são o ponto alto levantando a discussão do quão longe estamos dispostos a ir para aliviar a dor da perda ou da culpa. Como lidar com esse sentimento de amargura e impotência, principalmente quando se tem ciência de que o triste episódio poderia ter sido evitado? Midkiff é um ator carismático e retrata de forma crível e arrepiante o estado de loucura de um homem quando em confronto com o luto, o que justifica seus atos insanos e nos proíbe de questioná-los, afinal se há uma mínima chance de reverter as situações frustrantes sabemos que é difícil resistir à tentação. Sua dor é acompanhada da esposa com Crosby tendo como destaque o monólogo em que desabafa sobre a morte da irmã, ainda que impacte também no clímax não exatamente pela interpretação, mas pela situação em si. Mas sem dúvidas quem rouba a cena é o pequeno Hughes, ainda com três anos incompletos, mas atuando feito gente grande e com uma das mais marcantes e perturbadoras atuações infantis de todos os tempos em produções do gênero. 


Também merece destaque Gwyne, o dono dos segredos que envolve o título cuja ideia guarda até certa semelhança com um famoso conto inglês datado do início do século 20 e escrito por W. W. Jacobs. O texto aborda um artefato mágico capaz de realizar desejos, porém, sempre com algum ônus, e acompanha um homem cuja ganância causou a morte do filho que quando volta à vida decepciona o pai pela sua mudança radical de comportamento. Tal obra certamente deve ter servido como influência para Cemitério Maldito, embora não seja algo assumido por King que tem aqui uma das melhores adaptações cinematográficas de suas obras. O passar dos anos e as repetidas exibições na TV transformaram o filme em um clássico do terror, embora não seja tão apavorante quanto o título promete. Na verdade temos alguns picos de sustos e situações inusitadas capazes de manter a tensão crescente, mas o que mais nos angustia mesmo é a reflexão que nos deixa quanto a aceitação da morte, a única certeza que temos na vida, mas que as vezes não temos tempo suficiente sequer para pensar que ela pode chegar apressadamente e atingir a pessoa mais improvável de nosso convívio.

Terror - 103 min - 1989

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