domingo, 15 de novembro de 2020

O MERCADOR DE VENEZA


Nota 6 Com boa reconstituição de época, drama peca pela duração excessiva e texto rebuscado


Não é nada fácil adaptar para a linguagem cinematográfica uma obra de William Shakespeare. Há sempre o medo de descaracterizar o texto original na tentativa de ser criativo e se conectar com plateias contemporâneas ou então afugentar o público ao ser muito fiel ao estilo do dramaturgo, assim construindo diálogos rebuscados e que exigem interpretações mais exageradas. Talvez nesse segundo modelo se encaixe O Mercador de Veneza, adaptação de 2004 que fracassou apesar de contar com elenco de peso e o próprio título ter sua fama já de longa data. Todavia, é um texto menos popular do dramaturgo inglês e poucos saberiam dizer ao certo do que se trata, isso porque foi pouco difundido pelos meios culturais, ao contrário do drama de Hamlet ou da história de amor de Romeu e Julieta, por exemplo, que receberam inúmeras adaptações para cinema, televisão e teatro. O cultuado cineasta Orson Welles chegou a trabalhar em uma versão cinematográfica deste clássico literário que sequer foi lançada comercialmente, mas curiosamente, nos primórdios da sétima arte, uma adaptação marcou a estreia de uma mulher como diretora nos EUA, honra de Lois Weber. 

Em Veneza, em meados do século 16, o jovem Bassanio (Joseph Fiennes) deseja cortejar e impressionar Pórcia (Lynn Collins), uma rica herdeira, e para tanto decide pedir dinheiro tirando proveito do poder que sua beleza exerce sobre o amigo Antonio (Jeremy Irons), um rico comerciante, mas que está com toda sua  fortuna investida em embarcações. Seduzido, o negociante decide pedir um empréstimo ao judeu Shylock (Al Pacino), que faz da agiotagem, prática ilegal na cidade, a sua fonte de renda já que devido a sua religião não tem os mesmos direitos dos cristãos. Certa vez destratado por Antonio, que lhe deu uma cusparada no rosto, agora chegou a vez do agiota se vingar. Ele faz o empréstimo, mas firma um acordo: caso não seja ressarcido em três meses, o comerciante será obrigado a dar um pedaço de sua própria carne como pagamento. Obviamente, o trato não será cumprido e o caso será levado à corte para julgamento e Shylock mostra-se irredutível quanto a cobrança da dívida. Basicamente a trama se resume a esse entrecho, o que não justificaria as mais de duas horas de duração, mas o diretor e roteirista Michael Radford, do aclamado O Carteiro e o Poeta, faz questão de desenhar com riqueza de detalhes o contexto da época para mostrar o peso que o acordo exerce sobre os personagens. 


Por mais estapafúrdio que o contrato possa parecer, o seu descumprimento seria uma vergonha incontestável para qualquer homem e Shakespeare buscou nos hábitos de seus conterrâneos referências para dissertar sobre o assunto cujo cerne são os dilemas morais e éticos. Um pequeno resumo logo no início apresenta informações pertinentes sobre a situação constrangedora e isolada dos judeus em uma região predominantemente cristã. Humilhado e com orgulho ferido pelo ato repugnante de Antonio, teria o agiota o direito de fazer justiça com as próprias mãos, ainda que amparado por um acordo que seria o equivalente a palavra de honra do devedor? Como diz o ditado popular, a vingança é um prato que se come frio e o roteiro não se apressa para chegar ao momento do acerto de contas, o que pode ser enfadonho visto que os diálogos são fiéis ao estilo da obra original marcado por discursos empolados. Por conta disso, o filme poderia passar a impressão de uma peça de teatro filmada, mas felizmente a recriação visual da época representa a linha tênue com o estilo cinematográfico. Além dos figurinos requintados e da fotografia que busca fazer de cada frame uma imagem semelhante a uma pintura renascentista, a arte contemporânea ao período, as locações em construções históricas de Veneza e também de Luxemburgo trazem um realismo que ajuda a prender o interesse. 

Apesar do argumento principal ser um tanto dramático e polêmico, a obra, como grande parte das obras de Shakespeare, traz certo quê de comédia. O lado descontraído fica sob responsabilidade das personagens femininas que irão ter papel importante no desenlace da trama. Nesse momento, Pórcia se destaca como peça-chave durante o julgamento do caso ressaltando pontos falhos do acordo, o que coloca Shylock em situação desconfortável para encontrar meios de fazer valer sua vontade. O grande trunfo da produção é sem dúvidas a atuação de Pacino. Embora o título destaque o endividado, o protagonista, tanto do filme quanto da peça original, é Shylock que deixa latente sua revolta não só quanto ao episódio de humilhação que sofrera, mas sim com todo o tratamento marginal dispensado à comunidade judia. O personagem é beneficiado  justamente porque o grande motim do texto é o conflito entre religiões, mostrando os cristãos como privilegiados e pessoas livres e os judeus negligenciados, não tendo direito a adquirirem propriedades e tampouco empregos dignos. A situação entre Shylock e Antonio poderia ser usada como forma de provar que todos são iguais independente de suas crenças, mas o desenrolar acaba alimentando o preconceito contra os não-católicos graças ao ódio e teimosia do agiota. 


Pacino eclipsa nos momentos em que discursa sobre o preconceito e os motivos que levaram seu personagem a não voltar atrás quanto ao acordo, mas não o transforma em um legítimo vilão dando humanidade ao perfil em algumas passagens mais dramáticas, como quando fica sabendo que sua filha Jessica (Zuleikha Robinson) o abandonou. Irons e Fiennes também são muito importantes para o enredo, com atuações que deixam no ar sentimentos ambíguos, não ficando claras as intenções de Bassanio e tampouco de Antonio quanto a relação que vivenciam. Admiração exagerada por parte de um deles e o outro simplesmente um aproveitador ou de fato já existiu algo entre eles além de amizade? Contudo, após o conflito estabelecido, suas figuras perdem espaço não só para Pacino como também para Collins que rouba a cena com sua beleza e, como já dito, adicionando certa leveza ao pesado clima. Também diverte com trejeitos engraçados e aparência estranha, ao menos as poucas vezes que a câmera o busca, Gratiano (Kris Marshall), personagem inserido apenas como alívio cômico. De qualquer forma, a tônica de O Mercador de Veneza é o drama, sensação reafirmada pelo estilo rebuscado da obra que a faz parecer um filme antigo e que encontra dificuldades para encontrar seu público que já na época do lançamento não parecia muito disposto a embarcar em produções de estilo extremamente clássico.

Drama - 138 min - 2004 

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