domingo, 4 de setembro de 2022

O GATO DO RABINO


Nota 7,0 Riqueza visual compensa a falta de ritmo da trama que discute basicamente crenças


Graças a festivais e premiações temos a oportunidade de assistir a animações fora do eixo Hollywood e com estéticas e propostas diferenciadas, mas são raras as produções do tipo que depois de sessões especiais para cinéfilos de carteirinha conseguem distribuidores para entrarem em circuito de exibição ou lançamento para consumo doméstico. Ainda que timidamente, O Gato do Rabino conseguiu quebrar esse paradigma, mas ainda assim ficou restrito aos espectadores mais cults, a começar pelo fato de não ser destinado às crianças e sim pensado para os adultos. Vencedora do César (o Oscar Francês) de melhor animação e premiado no Festival de Annecy (destinado apenas a produções do gênero), a produção, embora de época, aborda assuntos ainda em voga em torno de dogmas religiosos, mas sem envolver questões a respeito de políticas e disputas de territórios, focando mais nas ideologias que regem as crenças. Como o próprio título deixa claro, o protagonista não tem nome, sempre foi chamado simplesmente de o gato do rabino. Embora culto e refinado, o bichano ainda mantém os institutos naturais de sua espécie, o que o leva a devorar o papagaio de seu dono, o rabino Sfar. Imediatamente após este fato ele começa a falar, embora jure que não comeu a tal ave, e assim passa a verbalizar suas ideias acerca de amor, sociedade e crenças. Chocado com os pensamentos e questionamentos do animal, Sfar passa a temer pela má influência que ele poderia exercer sobre sua filha, a jovem e bela Zlabya. Ela e o gato não se desgrudam e agora que ele sabe falar e até ler a convivência torna-se ainda mais intensa. 

O rabino então procura impor limites para esse relacionamento, mas amolece seu coração quando o felino lhe conta sobre o desejo de se tornar judeu, incluindo a expectativa para a hora de fazer seu Bar Mitzvá, tradicional cerimônia judaica que marca para os meninos a transição da adolescência para a maioridade religiosa. Seu dono então precisa consultar seu próprio rabino, este que repudia a ideia de converter um animal, o que gera discussões envolvendo questões filosóficas e de teologia que infelizmente acabam comprometendo o ritmo. A Argélia de meados da década de 1920, na qual pessoas das mais diversas religiões convivem em harmonia, foi o cenário escolhido pelo quadrinhista Joann Sfar (aqui chamado apenas pelo primeiro nome para não fazer confusão com um dos personagens) narrar a história oriunda de HQs de sua própria autoria. Na transição para o cinema, o próprio assumiu a direção e o roteiro, créditos que divide respectivamente com Antoine Delesvaus e Sandrina Jardel. Diretor de Gainsburg – O Homem que Amava as Mulheres, Joann tinha até então mais reconhecimento no campo dos impressos, sendo que em 2004 tornou-se o autor mais jovem a receber o Grand Prix de la Ville d’Angouleme, o prêmio máximo de um tradicional festival de quadrinhos da Europa. Com uma produção atípica de quatro a seis publicações anuais (enquanto a maioria dos artistas europeus trabalha apenas com um ou dois lançamentos), o quadrinhista havia dividido a história do gato dotado de muita personalidade e sabedoria em cinco volumes, sendo que dois chegaram a ser lançados no Brasil. Para o filme optou pela compilação dos contos, mas é perceptível que a boa premissa pouco a pouco perde o encanto. Até o gato a certa altura deixa de falar e passa a manifestar-se ao espectador apenas através de pensamentos. 


Alinhavados em uma única trama, as premissas de cada álbum rendem um texto que carece de unidade. Após a boa introdução que apresenta os personagens principais, deixando claras as intenções do gato em agradar ao rabino para não ser afastado de sua paixão platônica, entram em cena um primo de Sfar e um jovem pintor russo que deseja fazer uma expedição ruma à Etiópia à procura de uma Jerusalém mítica incrustrada no continente africano. Durante o trajeto, com um quê de aventuras de Tintin (algo realçado pelo tipo de animação), acontece um encontro com muçulmanos liderados por um intransigente príncipe. Esta subtrama corresponde ao quinto álbum da série e traz à tona discussões sobre racismo, porém, o assunto se alonga sem necessidade. Mais uma vez temas como respeito à cultura, doutrinas e formas de pensamento alheias são abordadas e mesmo envolvendo personagens com credos e convicções diferenciadas todos se comprometem na missão de achar a tal cidade prometida, um lugar onde o preconceito seria inexistente e todos poderiam viver em comunhão.

Se o roteiro tem seus problemas de estrutura, principalmente na parte da tal viagem à África quando a história se reduz a diálogos e pouca ação, a parte técnica é impecável e surpreende com seu traçado estilizado, uma animação que lembra aos antigos desenhos animados produzidos para a TV. Se aos personagens faltam expressões faciais e movimentos corporais, o que deve ser encarado como uma proposta artística e não como defeito, o detalhismo e as cores vivas dos cenários e planos de fundo compensam totalmente, transportando com facilidade o espectador para a Argélia do começo do século 20. De detalhes que lembram aos antigos hieróglifos egípcios, passando pelo inerente estilo típico de HQs europeias, o que mais chama a atenção, no entanto, são os traços predominantemente infantis. O resultado é uma mescla única de simplicidade e sofisticação, algo ressaltado nas cenas de delírios ou pesadelos do felino quando é possível apreciar a arte mais genuína de Joann podendo deixar a verossimilhança um pouco de lado. 


O multiculturismo que dá a tônica da história e também transparece no visual reflete os bastidores da animação que conta com profissionais de várias partes da Europa e alguns oriundos dos EUA e do Japão. O local em que a narrativa é desenvolvida é uma cidade de origem judaica, porém, com predominância muçulmana e influência do catolicismo, assim as curiosidades e indagações do gato traçam um paralelo entre algumas das mais populares doutrinas. Audacioso, o felino chega a confrontar dogmas religiosos com descobertas científicas, no entanto, o gato fica em cima do muro nas discussões que suscita. A provocação faz parte de sua natureza e serve para personificar o ponto de vista antagônico, representando a diferença com a qual muitas religiões têm dificuldades para lidar. No conjunto, O Gato do Rabino é apenas uma opção diferenciada de entretenimento fugindo de lugares comuns, mas não chega a ser excepcional. A impressão é de que as histórias em quadrinhos foram forçosamente alinhavadas, sendo que os personagens não evoluem assim como a trama que parece ter como único objetivo levantar pontos de vistas a fim de levar o espectador a refletir sobre suas próprias crenças e como respeitar as alheias. E a tal história de amor do gato e Zlabya? Não há espaço para ela com tanta filosofia e teologia no caminho.

Animação - 100 min - 2011

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