terça-feira, 1 de fevereiro de 2022

PONTE PARA TERABÍTIA


Nota 8 Economizando nos efeitos visuais, longa emotivo trabalha com o imaginário do espectador


É comum ouvirmos adultos lembrando com saudosismo da infância, época em que eram alheios a problemas e a vida era só diversão. Bem, quem diz isso é porque não viveu plenamente seus tempos de criança. Quem nunca perdeu o sono antes de enfrentar os primeiros dias em uma escola nova ou baixou a cabeça diante da valentia de colegas mais velhos ou marrentos? Dilemas e dúvidas fazem parte das nossas vidas desde pequenos e devem ser encarados como desafios a serem superados para nos ajudar a amadurecer para enfrentar o que vem pela frente. É um ciclo sem fim. Ponte Para Terabítia nos faz lembrar dessas dificuldades apresentando uma trama voltada às crianças, mas passando longe da infantilidade. Baseado no livro homônimo de Katherine Paterson, a história se passa em uma zona rural no interior dos EUA. Jess (Josh Hutcherson) é o único garoto entre a prole de cinco filhos do casal Mary (Kate Butler) e Jack Aaarons (Robert Patrick), assim faz parte de sua rotina assumir as responsabilidades quanto aos trabalhos pesados e manuais de casa quando seu pai está ausente. Suas únicas distrações são fazer desenhos e treinar corrida para se tornar o mais rápido de seu colégio. Contudo, quando a novata Leslie (AnnaSophia Robb) surpreende e o vence, o garoto não consegue esconder a sensação de humilhação. 

Leslie não quis ser maldosa, só queria se destacar no intuito de se enturmar mais facilmente, mostrando confiança e um pouco de superioridade, características marcantes das figuras mais populares em grupinhos. Apesar dessa rixa, algo em comum levará essas duas crianças a se tornarem amigos inseparáveis: a solidão. Os pais de Leslie, os intelectuais Judy (Judy McIntosh) e Bill Burke (Latham Gaines), são praticamente inexistentes em seu cotidiano, mas ela nunca se sente sozinha. Sua fértil imaginação lhe faz companhia e a leva a viver grandes aventuras as quais convence Jess a participar. É dessa união que surge o reino de Terabítia, um lugar devastado pelo temível Senhor das Sombras e que eles terão a missão de reconstruir enfrentando estranhas criaturas. Os conflitos da tal terra imaginária são criados a partir de momentos que têm relação com o mundo da vida real e enfrentá-los ajuda os jovens a superar tristezas e dificuldades, tanto no colégio quanto em seus lares, colaborando ativamente para seus amadurecimentos. Tudo isso é possível graças ao talento de Leslie para elaborar histórias e a criatividade plástica de Jesse que coloca no papel com cores vivas como seria Terabítia, a terra onde podem reinar em absoluto em contraponto ao ostracismo que viviam na realidade. 


O livro original foi criado em 1976 por Paterson no intuito de ajudar seu filho caçula David a superar a morte de uma grande amiga. E deu certo. O próprio colaborou na produção e na construção do roteiro (coescrito por Jeff Stockwell) permeado por uma pungente tristeza em meio a fantasia. Para criar o tal universo fantástico os efeitos especiais foram usados com moderação, sendo um ponto positivo a escolha por sugerir mais que explicitar, assim permitindo ao espectador imaginar Terabítia e seus habitantes junto com os protagonistas. Do temido gigante vemos apenas o pé e das aves predadoras temos apenas registros de sons. E do grande vilão, o Senhor das Sombras, de fato só vemos seu contorno contra a luz. A proposta visual e objetiva de Terabítia lembra bastante a franquia As Crônicas de Nárnia, inclusive tal obra, mais especificamente o livro original de C.S. Lewis, é uma inspiração confessa de Paterson, tanto que em certo momento Leslie empresta seus livros sobre Nárnia para Jess compreender melhor como funcionava um reino encantado e a postura que um rei deveria adotar. No entanto, apesar do mote da fuga da realidade, as tramas dos livros seguem trajetos diferenciados. Aqui os personagens não se ausentam integralmente do mundo real. Os passeios por Terabítia são passagens rápidas, porém, bastante intensas, mas sempre em paralelo aos acontecimentos da realidade.

A adaptação tem no comando o húngaro Gabor Csupo, então estreando na direção de atores reais. Antes acumulou vasta experiência no campo da animação, incluindo o longa Rugrats - Os Anjinhos bem como a série homônima, além de ter participado da criação de "Os Simpsons" no final da década de 1980. Abrindo mão da cartilha das super produções de Hollywood, mesmo com todos os recursos oferecidos, o diretor só explora um visual arrebatador na conclusão quando finalmente Terabítia é apresentada em todo seu esplendor para surpreender ou frustrar o espectador, tudo depende de como ele imaginou até então a terra mágica. No entanto, a emoção visual deste momento não é páreo ao sentimento humano envolvido. É quando Jess, após sofrer um grande trauma, decide incorporar sua irmã caçula, a cativante May Belle (Bailee Madison), que até então menosprezava, ao seu reino imaginário a intitulando como nova rainha. O garoto passou por uma situação transformadora, mas com tal ato deixa claro que não deixaria sua imaginação morrer. 


Vale dar um destaque a participação da atriz Zoey Deschanel como a Srta. Edmonds, a professora de música por quem Jess se apaixona platonicamente. No decorrer da trama tal gancho parece desnecessário, porém, é fundamental para o desfecho tocando em mais um assunto bastante pertinente ao universo infantil, o ciúmes, além de reiterar sobre os sentimentos de rejeição e amizade que permeiam todo o roteiro. Por fim, a química excepcional entre os protagonistas mirins transmite uma credibilidade ímpar à amizade de seus personagens, um amor verdadeiro e totalmente livre de malícia. O passar do tempo infelizmente não honrou as qualidades de Ponte Para Terabítia e a obra passou longe de se tornar um clássico no melhor estilo sessão da tarde. Contudo, ainda é uma opção diferenciada ao oferecer emoções genuínas e inesperadas. Como já dito, carrega uma maturidade que faz falta a maioria das produções infantis, mas não deixa de lado os ingredientes necessários para agradar não só as crianças, mas também aos adultos, afinal sonhar é preciso... Sempre!

Aventura - 94 min - 2007

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