NOTA 9,0 Mesclando ficção e fatos reais, longa preenche todos os requisitos de um grande clássico e surpreende com uma bem humorada homenagem |
William Shakespeare é sem dúvidas
o autor mais analisado e discutido de toda a História, assim como também suas
obras são recordistas em adaptações ou como inspiração para filmes, peças de
teatro, novelas, livros e uma infinidade de outros produtos culturais. Todo seu
histórico profissional já foi exaustivamente dissecado, mas curiosamente sua
vida pessoal continua envolta a especulações. Historiadores há muito tempo
desistiram de procurar pistas para montar o quebra-cabeças da intimidade do
escritor, assim o que sabemos não passam de suposições que alimentam a aura de
mistério em torno de seu nome. Há quem chegue a afirmar que ele não teria
escrito nenhum livro, apenas assumia a autoria de manuscritos de um nobre que
preferia ficar incógnito. De todas as fases de sua vida, a que é mais intrigante
compreende o período de 1585, quando deixou sua residência em
Stratford-upon-avon, e 1592 quando ressurgiu em Londres escrevendo peças para
companhias teatrais. Durante esses anos que sumiu do mapa ninguém sabe ao certo
o que lhe aconteceu, afinal na época ele ainda não era famoso. Como figura
célebre que se tornou, era questão de tempo para que o dramaturgo ocupasse a
posição de personagem, contudo o primeiro filme a tentar tal ousadia
surpreendentemente não é uma cinebiografia, muito menos um projeto lacrimoso. Shakespeare Apaixonado é uma divertida e
criativa imersão na fantasia de preencher as citadas lacunas de sua trajetória
que precederam sua consagração. À primeira vista, é a parte técnica que chama a
atenção com uma caprichada reconstituição de época, figurinos deslumbrantes,
trilha sonora deliciosa, fotografia que faz cada take parecer uma bela pintura
entre tantos outros predicados, porém, a obra tem muito mais a oferecer com seu
refinado texto repleto de referências às obras do autor, mas nada que impeça um
leigo no assunto de se emocionar e se divertir. O roteiro de Marc Norman e Tom
Stoppard apresenta o homenageado como um jovem escritor desprovido de recursos
financeiros, mas dotado de muitas ambições e espírito inventivo. Com seu charme
e beleza (embora os estudos indiquem que o autor espantava por sua feiúra), o
papel caiu nas mãos de Joseph Fiennes, que adota um estilo a la Don Juan para
humanizar o personagem que passa noitadas enfornado em tavernas bebendo todas e
cortejando mulheres. Há justificativas. Com poucas virtudes e muitos desvios de
caráter, o rapaz também está passando por um período de bloqueio criativo.
O Sol parece lhe voltar a brilhar
quando recebe a proposta de Philip Henslowe (Geoffrey Rush), um endividado
investidor que em uma última tentativa de impedir que seu teatro vá a falência lhe
encomenda uma peça, uma comédia intitulada "Romeu e Ethel, a Filha do
Pirata". Todavia, por conta de sua falta de inspiração, o roteiro do
projeto vai sendo escrito aos poucos. Conforme o andamento dos ensaios, o texto
vai sendo modificado regularmente e ganha outro rumo quando Will (como gosta de
ser chamado) conhece e se apaixona perdidamente por Viola De Lesseps (Gwyneth
Paltrow), mas viver esse amor é praticamente impossível já que ela além de ter
sangue nobre também já está comprometida com o Lorde Wessex (Colin Firth). O
impasse para esta situação só poderia ser resolvido por ninguém menos que a
Rainha Elizabeth (Judi Dench), ela própria uma apreciadora das artes cênicas
que poderia inclinar-se a ajudar o dramaturgo caso ele lhe apresentasse uma
peça que conseguisse a proeza de transmitir a verdadeira natureza do amor. Assim,
das próprias experiências e dificuldades com este episódio amoroso, o escritor
tem sua inspiração ressuscitada e assim começa a esboçar o que viria a ser o
seu maior feito literário, justamente o trágico romance envolvendo Romeu e
Julieta, jovens membros de famílias rivais que se apaixonam perdidamente a
ponto de cometerem um ato insano para ficarem juntos. A peça só viria a ser
encenada pela primeira vez dois anos após Will retornar a Inglaterra. O longa
acompanha todo o desenvolvimento da peça através dos ensaios e se o texto não
era exatamente para se gargalhar, homens travestidos involuntariamente se
incumbiam de injetar humor já que na época as mulheres eram proibidas de
atuarem. Viola, que adorava teatro e uma romântica por natureza, sonhava em ser
atriz para poder recitar poemas de amor e quando sabe dos testes de elenco não
se acanha em trocar seus vestidos por calças e casacas. Sem saber inicialmente
de quem se tratava, Will sente-se estranhamente atraído pelo jovem ator que
declama seus versos com desenvoltura e sentimentalismo, mas não tarda a descobrir
sua real identidade. Essa é a forma como encontram para namorar. Durante os
ensaios, seja nas coxias ou até mesmo na frente dos outros colaboradores, o
casal troca olhares, carícias e até se beijam, mesmo com ela vestida de homem.
Aos olhos embasbacados dos demais, a desculpa era sempre tudo pela arte.
Curiosamente, acabamos tendo a sensação que temos pouco de Shakespeare no
filme. Joseph, irmão mais novo de Ralph Fiennes, é talentoso, tem presença, mas
parece que o texto em sí não beneficia seu personagem que a certa altura passa
a agir em função de sua amada. Desde a primeira aparição Viola rouba para si as
atenções, embora as divida com um elenco talentosíssimo. Muitos nomes hoje
famosos e premiados tiveram aqui a oportunidade de reconhecimento por público e
crítica. Tom Wilkinson, Imelda Stauton e Ben Affleck (único deslocado,
praticamente sem função na trama) são alguns deles. Rupert Everett, na época em
evidência por O Casamento do Meu Melhor
Amigo, surge como o escritor Christopher Marlowe, um elemento a mais para
abordar que desde aquela época havia concorrência no show business e autores
não tinham suas obras respeitadas por diretores e produtores que somente
visavam lucros. Tanto tempo se passou e nada mudou, só piorou.
Esse era apenas o quarto longa
dirigido por John Madden que arrebatou dezenas de prêmios ao redor do mundo, mas
teve sua trajetória complicada justamente quando chegou naquele que é
considerado o maior evento da indústria cinematográfica. Na festa do Oscar,
apesar de toda bagagem de troféus e menções honrosas, a produção era
considerada o azarão já que estava na disputa com obras de forte apelo
dramático e histórico. Recordista de indicações no ano de 1999, concorrendo em
treze categorias, contrariando expectativas a fita faturou sete delas,
incluindo Melhor Filme e Melhor Atriz para Paltrow, fato que deixou um gostinho
amargo para os brasileiros já que Fernanda Montenegro estava no páreo com sua irretocável
e tocante interpretação em Central do
Brasil. Nossa querida dama da dramaturgia realmente teve um desempenho
superior, mas sabemos como funciona Hollywood. Jamais premiariam uma atriz que
não esboçasse interesse de atuar no cinema americano. A italiana Sophia Loren e
a francesa Marion Cotillard, por exemplo, venceram utilizando seus próprios
idiomas em cena, mas pontualmente participam de produções ianques. Assim Paltrow acabou sendo agraciada com a
estatueta por ser uma jovem em ascensão, o prêmio serviria para consolidar sua
carreira, mas o efeito foi contrário. Viola é uma personagem bem interessante,
flertando com a doçura e a determinação, mas parecia um perfil apagadinho
diante das outras concorrentes, todas com personagem densos e calcados no drama.
Paltrow, com uma interpretação leve e que exala frescor, era o patinho feio da
turma. O resultado é que a atriz saiu da festa com fama de protegida e seus
trabalhos seguintes sentiram o peso da crítica, um fantasma que ainda a
persegue, embora pareça ter encontrado seu espaço no cinema alternativo. Shakespeare Apaixonado como um todo saiu
chamuscado desta história. Sabemos que as produções com temáticas mais sérias e
pesadas são o xodó das premiações e o trabalho de Madden conseguiu quebrar um
jejum de mais de duas décadas. Até então a última comédia a faturar o Oscar era
Noivo Neurótico, Noiva Nervosa. Toda
essa publicidade negativa acabou ofuscando o real brilho da obra que ainda é
desconhecida por muitos por puro preconceito. Abordando a clássica redenção
através do amor, eis um trabalho que representa o que esperamos de um legítimo
Melhor Filme: texto excelente, interpretações em sua maioria vigorosas, tecnicamente
impecável e adornado pela aura de um épico. Pense nos últimos vencedores da
categoria principal do Oscar, que acumulam até mesmo dois ou três troféus
apenas, e reconsidere. Serão eles mesmos os melhores de seus respectivos anos?
Para começar, é difícil até lembrar dos seus títulos.
Vencedor do Oscar de filme, atriz (Gwyneth Paltrow), atriz coadjuvante (Judi Dench), roteiro original, trilha sonora, direção de arte e figurino
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