quinta-feira, 3 de dezembro de 2020

O CAMINHO DAS NUVENS


Nota 7,0 Apesar do tema triste, longa conta história com leveza e atuações sinceras e inspiradas


Retratar a dura vida no sertão nordestino e a força de vontade de seus habitantes para mudar de vida são temáticas corriqueiras do cinema brasileiro, o que talvez explique o porquê de muitas dessas produções não chamarem a atenção do público, como aconteceu com O Caminho das Nuvens. Vicente Amorin, então estreando como diretor de ficção após fazer sucesso como documentarista, explora tal ficção, mas com certo toque diferenciado transformando a história de uma família migrante em um road movie. Assim, o relato de um grave problema social ganha mais leveza e, consequentemente, torna-se mais atraente aos olhos do público. Baseado em fatos reais, o roteiro de David França Mendes narra a odisseia vivida por um casal e seus cinco filhos, incluindo um bebezinho, que sem dinheiro para condução acabam percorrendo milhares de quilômetros montados em simples bicicletas e motivados pela busca de um sonho em comum. Romão (Wagner Moura) é um caminhoneiro desempregado que deixa o interior da Paraíba na companhia da esposa Rose (Claudia Abreu) para uma longa viagem rumo ao Rio de Janeiro, mas antes com uma estratégica parada em Juazeiro do Norte onde o patriarca irá pedir as bençãos de Padre Cícero. Por cerca de seis meses, sua família atravessa cinco estados e passa por diversas agruras, tudo para o patriarca tentar conseguir um emprego cujo salário para ele, dentro de sua realidade, seria uma fortuna quando na verdade não passava de uma mixaria que não bancaria o sustento do clã em terras cariocas. 

Fome, sede, cansaço e desilusão marcam a viagem, mas eles também vivenciam a solidariedade do povo brasileiro, ou ao menos de algumas pessoas com bom coração. Diversas cenas emocionam, mas algumas podem despertar a ira do espectador incomodado com a teimosia de Romão em continuar com a travessia mesmo diante de tantas adversidades. Antonio (Ravi Lacerda), o filho mais velho, insiste que a viagem é uma perda de tempo, o que ocasiona diversas discussões com o pai que como chefe de família tradicional exige obediência. De vez em quando a vida real apresenta histórias curiosas e improváveis que parecem ter brotado de alguma imaginação bastante fértil, mas a epopeia de Cícero Ferreira Dias vivenciada em 1998 não foi apenas um sonho. O fato noticiado em alguns jornais da época chamou a atenção de produtores, mas o bom argumento parece ter se diluído ao longo do processo de realização. Ainda que o filme seja relativamente curto e o conjunto agradável, fica a sensação de a trama ter sido desenvolvida de forma apressada e com alguns problemas estruturais, mas ao menos a mensagem que Amorim desejava passar é captada com sucesso até por ser bastante óbvia. O filme almeja o positivismo, mais uma vez provar que, por mais calejado que seja, o povo brasileiro é dotado de uma fé inabalável e mesmo com todas as adversidades continua acreditando em um futuro melhor. Quantas milhares de pessoas esperançosas como Romão existem espalhadas por todo o país e até mesmo pelo mundo afora? 


O problema é que muitos desses sonhadores se apegam a força de vontade para provarem que estão dispostos a trabalhar faça chuva ou faça sol, mas se esquecem que o mercado de trabalho é uma selva que exige no mínimo que os candidatos sejam alfabetizados, o que não é o caso do protagonista. Moura consegue equilibrar com perfeição o tom altruísta e ao mesmo tempo amargo de seu personagem em uma composição bastante intimista e complexa. Romão demonstra amar a família incondicionalmente, mas no fundo tem certo ressentimento por sua esposa e filhos aceitarem seu fracasso, um problema cujas raízes se encontram no fato de ele próprio se menosprezar por estar desempregado e não conseguir provir o sustento de seus entes. É um orgulho ferido de quem foi criado induzido a acreditar que um homem só tem dignidade quando consegue assumir completamente o papel de chefe de família. Ainda assim, como já dito, ele é bastante rígido, mas por outro lado observa passivamente Rose e os filhos ganharem dinheiro com bicos, seja cantando em bares ou lavando carros. Na época de lançamento, praticamente simultaneamente, Moura também tinha um dos papéis principais de Deus é Brasileiro e as duas obras guardam certas similaridades além da presença do ator. Ambas são produções de histórias de estradas cujas ações se passam praticamente todas em solo nordestino. Contudo, o filme dirigido por Carlos Diegues apresentava um visual mais para agradar turistas, dando ênfase a belas paisagens naturais, enquanto Amorim debruçou-se sobre uma realidade mais árida e melancólica.

Abreu, mesmo sendo mais velha que o protagonista e bonita demais para viver uma mulher de vida tão sofrida, convence perfeitamente graças a seu talento, carisma e naturalidade. Emociona demonstrando o sofrimento de Rose ao ver os filhos chorando de fome, mostra-se determinada quando precisa até mesmo mendigar por esmolas e apenas com a força do olhar consegue ilustrar os momentos em que a mulher reprova algumas atitudes inconsequentes do marido. De quebra, a atriz surpreende com um ótimo sotaque nordestino e com voz afinada quando se põe a cantar. Foi ideia da própria atriz incorporar ao roteiro esse talento para sua personagem, o que confere uma dose extra de humanidade. A trilha sonora merece destaque por ser quase toda com canções de Roberto Carlos que, além de soarem ao fundo nas muitas paradas da família pelo caminho, também ganham importância no enredo já que Rodney (Felipe Newton), o filho do meio, é fã do artista e a certa altura Rose entoa em público algumas de suas famosas músicas. Falando nisso, o cantor Sidney Magal faz uma participação especial interpretando Panamá, um produtor charlatão que contrata os retirantes para um trabalho ainda mais picareta que ele próprio. Ele é uma das várias pessoas que surgem no trajeto da família, mas felizmente Amorim evita que o filme se divida em episódios, algo bastante comum em road movies, e sempre busca o máximo de veracidade. 


Jamais o diretor permite que as figuras encontradas ao longo do caminho se sobreponham aos personagens principais, assim o espectador não perde o foco e consegue vivenciar junto toda a sacrificante jornada dos itinerantes. Amorim permite que Moura e Abreu brilhem tanto individualmente quanto juntos em cena e percebe-se que ofereceu a eles certas liberdades para conduzirem seus personagens. Dos filhos, quem se destaca é Lacerda não só pelo talento, mas pela própria trama que beneficia seu personagem com o relacionamento conturbado com o pai. Quem espera um final feliz ou até mesmo dramático pode se decepcionar com o desfecho de O Caminho das Nuvens. Seguindo a lógica da vida real, o filme acaba sem qualquer clímax, afinal nenhum momento termina sem algum desdobramento, seja ele positivo ou negativo. Jamais pensando em narrar novos eventos desta família em um segundo filme, Amorim simplesmente prefere deixar o final em aberto. Buscando sempre o realismo, quem seria ele para poder oferecer um desfecho redondinho à esta história?

Drama - 86 min - 2003

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