NOTA 6,0 Reinvenção de história de monstro clássico não se define entre aventura ou horror e se atrapalha ao panfletar sobre ambicioso projeto de seu estúdio |
O cinema desde seus primórdios
precisou se reinventar para não sucumbir ao esquecimento, mas neste início do
século 21 passa por uma acirrada disputa com a internet. Além da pirataria, os
próprios estúdios já estão com os olhos mais voltados aos serviços de streaming
do que para as salas escuras, assim tornou-se uma raridade um filme modesto se
sobressair. Até os blockbusters também estão tendo dificuldades para achar seu
público, mas os arrasa-quarteirões encontraram um recurso rentável para sua
sobrevivência: o 3D. A moda é fazer com que o espectador de certa forma assuma
o lugar de um personagem, principalmente nas cenas de ação e apuros, entrando
dentro do filme. A tentativa é válida, mas o problema é que tal tecnologia em muitos
casos está se tornando a semente de projetos e os roteiros estão ficando em
segundo plano. Anunciado com toda pompa, A Múmia lançado
em 2017 sofre desse mal. Além da propaganda de ter Tom Cruise como
protagonista, parece que a justificativa para a produção existir é o simples
fato de usar a tecnologia tridimensional. Essa pode ser a interpretação do
público, mas para o estúdio Universal a fita insere-se em um ambicioso projeto.
Esta é a obra que deu o pontapé inicial ao Dark Universe (algo como Universo
Sombrio), uma espécie de franquia não-oficial idealizada para resgatar monstros
clássicos, personagens da literatura cujas caracterizações ganharam um visual
definitivo e foram inseridas no universo pop graças as adaptações
cinematográficas da produtora lançadas ainda em seus primórdios. Em 1932, o
lendário Boris Karloff tocou o terror e tirou o sono de muita gente ao dar vida
(literalmente) ao sacerdote egípcio que foi submetido a um terrível ritual de
morte e prometeu se vingar. Quase na virada do século, em 1999, Brendan Fraser
é quem enfrentou a criatura morta-viva em uma aventura que apenas tomou
emprestada a essência do original, mas criou todo um background próprio. Quase
vinte anos depois foi a vez de Cruise assumir o papel de herói em uma nova releitura
do clássico, uma versão bem mais sombria em termos visuais, mas que fica a
dever em suspense, exagera na ação e busca alívio cômico em momentos
inoportunos.
A personagem-título agora é
defendida por uma mulher, a atriz argeliana Sofia Boutella. A princesa egípcia
Ahmamet matou toda sua família cega pela ânsia de poder e foi condenada à pagar
por seus atos por toda a eternidade, sendo submetida a um doloroso processo de
mumificação quando ainda estava viva. Séculos depois, já nos dias atuais, Nick
Morton (Cruise), um soldado de moral duvidosa, acaba descobrindo por acaso seu
sarcófago com a ajuda de um mapa do tesouro que roubou da arqueóloga Jenny Halsey (Annabelle Wallis).
Apoiado por seu fiel escudeiro Chris Vail (Jake Johnson), ele decide levar tal
relíquia para Londres, mas no trajeto de avião a morta-viva é despertada, o que
faz com que ela passe a persegui-lo a fim de completar um ritual de sacrifício
que a dotaria de poderes insuperáveis unindo seu corpo e alma ao seu escolhido,
no caso, nosso anti-herói provavelmente porque ele a despertou, mas os motivos
da fixação por este homem nunca ficam claros. Ela já havia feito um pacto no
passado com Set, o Deus da Morte, para ganhar dons especiais que a ajudariam a dominar
o Egito ou quiçá o mundo todo, mas ele não foi concretizado. Ao saber da
descoberta, o renomado Dr. Henry Jekyll (Russell Crowe), dono de uma
organização envolta em mistérios, não mede esforços para capturar a múmia, mas
esbarra em seu problema de dupla personalidade que as vezes o leva a assumir a
identidade do maléfico Mr. Hyde. Ele luta diariamente contra essa maldição, mas
não há tempo para desenvolver adequadamente um perfil tão complexo em uma trama
tão frenética. Tal personagem, aqui coadjuvante, na verdade é o protagonista da
clássica história de "O Médico e o Monstro", de Robert Louis
Stevenson, mais uma obra literária que ganhou versão cinematográfica, se tornou
um clássico do horror e consta nos planos da Universal para ser refilmado. A
ideia seria que a cada lançamento da Dark Universe algum personagem ou
elemento-chave próximo filme deste universo fosse inserido na trama de forma a
fazer um link entre as obras e instigar a curiosidade do espectador. Aqui a
carta na manga não deu certo. Além do roteiro entregar de bandeja ao espectador
a identidade demoníaca de Jekyll abrindo mão do sugestionamento e apelando para
uma exagerada maquiagem para demarcar a transformação de perfil, algo que pode
ser prejudicial para seu filme-solo, muita gente não compreende sua
participação na trama simplesmente porque nunca tiveram conhecimento de sua
existência. A intenção é das melhores, porém, infelizmente esbarra na memória
curta ou falta de repertório cultural do grande público.
Com um personagem canastrão e sem
uma característica que o diferencie de tantos outros que já fez, sabe-se lá
porque Cruise aceitou participar. Talvez para mostrar que mesmo cinquentão
ainda está em boa forma e pode se dar ao luxo de dispensar dublês nas cenas
perigosas. Resgatando a imagem clássica de herói, ajuda o perfil de seu par
romântico. Sempre de visual impecável, Jenny é incapaz de se defender sozinha
ou dar um passo sequer sem a ajuda do macho-alfa. A própria sobrevivência da
vilã gravita em torno dele. A criatura passa a ser coadjuvante de luxo em seu
próprio filme. Roteirista de aventuras como Missão
Impossível 3 e Transformers,
esperava-se algo bem mais divertido do diretor Alex Kurtzman, que até então só
havia assinado a direção do drama familiar Bem
Vindo à Vida, ou seja, inexperiente atrás das câmeras para um projeto tão
ambicioso. Quando surgiram as primeiras notícias do projeto de imediato nasceu
uma expectativa a respeito do que a vilã milenar aprontaria nos dias atuais,
mas suas próprias ameaças e poderes não causam impacto e limitam-se a suscitar
tempestades de areia e a ressuscitar cadáveres que formarão seu exército de
aliados. Aliás, as múmias serviçais são dotadas de um visual bastante
estilizado lembrando a zumbis, o que acaba desmistificando um pouco a clássica
figura do morto-vivo enrolado em bandagens. A personagem-título também ganhou
uma estética peculiar, mas nos momentos de mostrar sua força seu corpo
curvilíneo mostra-se mirrado para a magnitude que seus atos deveriam
representar. Lá pela metade, quando entra em cena Jekyll, Ahmamet literalmente
fica presa por muito tempo e o filme perde completamente o ritmo. O roteiro de
David Koepp, Christopher McQuarrie e Dylan Kussman não consegue desenvolver as
situações que joga na tela, parecendo que esperavam que tudo seria resolvido
magicamente na pós-produção com uma edição frenética e efeitos visuais e
sonoros estridentes para distrair o espectador do foco do enredo. E assim foi
feito. A Múmia se sustenta por uma
série de sequências de ação que não empolgam e jamais o espectador percebe o
clima de suspense ou horror que esperava. Não haveria problema algum em mudar a
essência, desde que o perfil de aventura fosse assumido com dignidade. Kurtzman
realiza um trabalho em cima do muro, mas ao menos mantém do início ao fim um
visual bastante sombrio e oferece efeitos visuais bacanas, mas nada de
excepcional. Por toda publicidade que teve, não é a toa que a produção
decepcionou. Serve como lição para a Universal caso queira levar adiante o Dark
Universe.
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