Nota 9,0 Cinebiografia ganha vigor com atuação que desmistifica figura histórica aborrecida
É impressionante investigar a
História do cinema e ver a quantidade enorme de filmes que foram super
elogiados e premiados, mas que a ação do tempo em conjunto com a modernidade
acabaram empurrando-os para o limbo. São inúmeros títulos que se perderam na
transição das fitas VHS para o DVD e hoje, com os serviços de streaming
alimentando a ânsia do público por novidades, infelizmente se tornam cada vez
mais ínfimas as chances de grandes produções voltarem ao mercado. Uma pena para
os verdadeiros cinéfilos que prezam por conteúdo e qualidade e são privados de
ver ou rever obras como As Loucuras do Rei
George, uma luxuosa e cuidadosa produção que deixou sua passagem
registrada pelos principais festivais e premiações em meados da década de 1990,
chegando obviamente ao Oscar conquistando duas estatuetas. A trama escrita por
Alan Bennett se baseia em fatos verídicos ocorridos em um período conturbado da
vida do monarca da Grã-Bretanha George III (Nigel Hawthorne) no final do século
18. Ele era um homem que mantinha um bom relacionamento com seus súditos e levava
uma vida pessoal irretocável, sendo muito feliz no casamento com Charlotte
(Helen Mirren). O casal teve nada mais nada menos que quinze herdeiros, entre
eles o Príncipe de Gales (Rupert Everett), o primeiro representante na linha de
sucessão ao trono e aquele que viria a trair seu próprio pai em nome do poder,
um mal que parecia fazer parte do histórico do clã visto que traições
semelhantes já haviam ocorrido em outras gerações, nada muito diferente do que
ocorria entre tantas outras famílias nobres da época. Seu filho mais velho
defendia que o comportamento da família real deveria ser um exemplo à
população, apesar de ele próprio levar uma vida desgarrada e cheia de pecados. O
grande ponto de conflito é que o rapaz criticava abertamente o comportamento do
pai conhecido por suas excentricidades. Conforme o tempo passa essas atitudes
diferentes do monarca começam a gerar inquietações, constrangimentos e a
levantar suspeitas de que o rei de fato enlouqueceu e eis o momento em que a
disputa pela sucessão do trono se acirra. Uma facção da nobreza se empenhou para tentar
minimizar os efeitos da senilidade do rei e diante da incapacidade de seu
médico pessoal em identificar as causas para seu problema recorrem ao apoio do
doutor Francis Willis (Ian Jolm), um psiquiatra adepto de métodos poucos convencionais.
Se todos pareciam acreditar na
demência do rei, o roteiro investe no contraponto dos olhares de dois estranhos
às intrigas e cotidiano palaciano. Além do citado Willis, George também contava
com o apoio de Greville (Rupert Graves), um jovem criado. Todavia, a realeza
trata logo de descartar a ambos assim que se tornam dispensáveis, uma forma de
esconder qualquer sinal de conspiração no caso. O empregado sente-se traído,
vítima de sua origem humilde, mas o médico tem compreensão do jogo de
interesses que ocorre. Os livros de História costumam ser poucos generosos ao
comentar a passagem de George III pela política apontando-o como um déspota,
simplesmente um tirano. No início de seu reinado reconquistou parte dos poderes
que o pai e o avô haviam perdido para o Parlamento e mais tarde seu modo de
governar linha dura com as colônias da América culminou na independência dos
EUA. O episódio, lembrado com frustração pelo próprio, rendeu uma crise
superada somente com a nomeação de um primeiro-ministro que ajudou a manter a
paz no reino até que o seu filho mais velho veio a se tornar príncipe-regente,
período que ficou conhecido como Crise da Regência. Ao todo foram seis décadas
mantendo-se no poder e por duas vezes ele foi apontado como louco. Na primeira
crise recuperou-se rapidamente, mas sua recaída foi tão grave que chegou a
afastá-lo do comando do reino por um ano. É justamente este período, quando
somava cerca de trinta anos no trono, recriado em As
Loucuras do Rei George pelo diretor Nicholas Hytner que então
fazia sua estreia atrás das câmeras adaptando a peça do próprio Bennett encenada
com sucesso em Londres. Hawthorne já havia interpretado o monarca no teatro e
trouxe toda sua intimidade com o papel para a versão cinematográfica, assim
conseguindo transformar o protagonista, no fundo uma pessoa um tanto aborrecida,
em um velhinho simpático que cativa o espectador, sobretudo quando é revelado
ao final do martírio que seus supostos sintomas de demência eram provenientes
de uma doença rara e hereditária. Infelizmente, o já veterano ator depois não
conseguiu bons papeis no cinema, ao contrário de Everett que conseguiu se manter
em evidência, mesmo como coadjuvante. Já Mirren, como a esposa do monarca,
ganhou pela segunda vez o prêmio de Melhor Atriz no Festival de Cannes e,
curiosamente, mais de uma década depois ganhou o Oscar vivendo outra nobre
figura em A Rainha. Curioso,
divertido, histórico... Uma pena que uma obra tão rica não encontre o mesmo
espaço que bobagens repetidas à exaustão na TV.
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