segunda-feira, 5 de dezembro de 2016

EDWARD MÃOS DE TESOURA

NOTA 10,0

Embora para muitos seu valor
tenha diminuído com as reprises
na TV, esta fantasia ainda diverte
e emociona como poucas obras
Qualquer pessoa que conheça o mínimo possível de cinema sabe que a parceria do diretor Tim Burton e do ator Johnny Depp é uma das mais longas e produtivas de todos os tempos. É um daqueles raros encontros cuja emoção ultrapassa os limites da ficção e mesmo quando o filme não é lá grande coisa os fãs da dupla estão apostos para exaltá-lo afinal este seria mais um tijolinho a reforçar esta sólida amizade e é um prazer inenarrável ser testemunha sentimental da construção desta relação, ainda mais sabendo que nos bastidores desta indústria a guerra de egos é intensa e os amigos da onça existem em peso. Esta trajetória começou no início dos anos 90 e provavelmente no futuro deve render alguma homenagem cinematográfica afinal ambos têm carreiras com projetos interessantíssimos e eles próprios são figuras que despertam curiosidades. Revisitar tal história é delicioso, ainda mais se voltarmos ao início de tudo. Burton é um cineasta que escreveu sua trajetória no cinema na base de bizarrices praticamente. Dono de um visual um tanto excêntrico e adepto do estilo gótico para ornamentar seus trabalhos, o campo do terror e do suspense poderia ser seu habitat natural, mas não é bem assim. Apesar de já ter trabalhado com histórias de arrepiar, o que ele mais gosta mesmo é de fazer as plateias sonharem de forma diferenciada. Com muita sinceridade e sensibilidade o diretor já conseguiu construir verdadeiros clássicos das sessões da tarde que agradam a todas as idades, desde crianças bem pequenas até os idosos, e sempre imprimindo suas marcas. Dificilmente alguém não tenha a lembrança de ao menos uma vez na vida ter esperado com ansiedade a exibição na TV ou ter entrado na fila de espera da locadora para assistir Edward Mãos de Tesoura, um daqueles filmes que marcam época mesmo contando uma singela e até certo ponto previsível história. É óbvio que aqui também faz diferença o apuro visual, mas esqueçam os efeitos especiais mirabolantes. A magia desta produção se concentra em seu aspecto artesanal, atestando que tudo realmente foi feito por mãos talentosas e precisas. O cineasta demonstra criatividade para mesclar a fantasia e referências cinematográficas e literárias de forma que até o público infantil se sentisse atraído para entrar nesse misterioso e fascinante mundo, não se assustando nem mesmo com os primeiros minutos que são mergulhados em uma atmosfera dark. Todavia, o tom de fábula está presente em todas as sequências do filme, a começar pela opção de uma senhora de idade logo na introdução passar a contar para a neta a história do personagem-título como se fosse um conto de ninar. A cidade onde a trama se passa parece um paraíso, os vizinhos se dão bem, as casas são bonitas e padronizadas e seus moradores em geral são estereotipados propositalmente, cada qual com um papel bem delineado. Tem a mulher bondosa, a sedutora, a gordinha fofoqueira, o jovem valentão, a mocinha romântica... O que tira o projeto da mesmice é justamente seu protagonista cuja personalidade, postura e visual destoam totalmente do restante da população provinciana. Pode-se dizer que tal criação seria uma metáfora, um grito para chamar a atenção. Ainda tentando ter seu trabalho aceito pelo mercado cinematográfico, Burton na época se sentia um esquisitão no meio, mas não se rendia as exigências de Hollywood e tocava sua carreira com projetos pessoais e correndo atrás dos recursos financeiros.

Depp, em sua primeira parceria com o cineasta e em um de seus primeiros trabalhos de grande projeção, dá vida a Edward, cuja história lembra um pouco a outras tramas clássicas que já ganharam diversas adaptações cinematográficas como Frankenstein ou A Bela e a Fera. Estes contos têm em comum o fato de seus protagonistas possuírem bom coração e de certa forma serem ingênuos, mas acabam sendo vistos como monstros devido as suas aparências, algo reforçado pelo comportamento recluso que praticam, todavia, eles são seres incompreendidos e que preferem se esconder a enfrentar o preconceito. Edward vive a mesma situação. Seu criador, interpretado pelo lorde dos filmes antigos de horror Vicent Price em sua derradeira atuação, vivia isolado em um castelo no alto de uma montanha e passava seu tempo inventando coisas. Sua obsessão era criar um ser humano praticamente perfeito, mas acabou falecendo antes de completar seu último projeto, assim Edward foi obrigado a aprender a conviver com afiadas lâminas no lugar de suas mãos. Apesar da aparência estranha, pálida e com cabelos desgrenhados, características que curiosamente se assemelham ao visual do próprio Burton, o rapaz é muito dócil, educado, mas qualquer contato com ele pode oferecer perigo, porém, não seria sua culpa, apenas um acidente ocasional. Bem, fazer mal a alguém seria muito difícil afinal ele passou boa parte do tempo de sua existência trancado no castelo descobrindo um talento especial para cortar as coisas, assim criando um belíssimo e inovador jardim que ele mantém há anos podando cada árvore ou planta em formato de esculturas, uma febre que tomou conta dos jardins de muitas residências no início da década de 1990, ainda que o longa não deixe especificado em qual época a ação é desenvolvida. Mas voltando ao enredo, a vida de Edward muda completamente quando Peg Bobbs (Dianne Wiest), bate à sua parte. Ela é uma vendedora de cosméticos que fica com pena do rapaz e resolve ajudá-lo levando-o para sua casa. Assim ele troca sua melancólica e escura residência pela colorida e agitada vizinhança que o cercava há anos e que só podia admirar a distância. Como é de praxe, assim que Peg chega em casa acompanhada de seu convidado a fofoca rola solta até que finalmente os vizinhos conhecem o rapaz que inicialmente é visto como uma novidade e tanto, um evento capaz de quebrar a rotina tediosa da cidade. A partir daí o roteiro segue a linha tradicional de qualquer história que tenha como mote principal a inclusão do diferente em uma sociedade padronizada. O ser esquisito se sente um peixe fora d’água, arruma confusões, atrai atenções de alguns e desperta a raiva de outros, no caso, os homens da pacata cidadezinha que ficam com ciúme do sucesso de Edward junto as mulheres.  Logo seu talento com suas mãos privilegiadas é descoberto e seus cortes de cabelo literalmente passam a fazer a cabeça da mulherada, mas infelizmente não demora muito para o preconceito vir a tona. Edward acaba se apaixonando por Kim (Winona Ryder), filha de sua protetora, e em nome desse sentimento e até por ingenuidade o rapaz acaba se metendo em uma confusão e imediatamente começa a ser apontado como uma ameaça a paz de todos. Embora muitas situações que recheiam o longa sejam um tanto clichês (talvez na época não fossem), Burton consegue trabalhar com elementos que acabam encantando o espectador que embarca facilmente nessa fábula. E é quase impossível pensar em algum outro ator contemporâneo a Depp para dar vida a uma criatura tão ambígua, que ao mesmo tempo que assusta também cativa com seu olhar inocente. Mesmo balbuciando algumas poucas palavras durante toda a projeção seu personagem seria uma verdadeira prova de fogo para qualquer ator. É muito difícil impor sua presença como protagonista quando o próprio personagem se sente um figurante no dia-a-dia daqueles que o cercam.

O roteiro da então estreante Caroline Thompson, que voltaria a trabalhar com Burton em A Noiva Cadáver, é bastante envolvente, reúne características de diversos gêneros (tanto que é difícil classificar a obra em um estilo específico), tem boas tiradas de humor, mas peca justamente no viés romântico que deveria ser o clímax do longa: o envolvimento amoroso entre uma pessoa normal e o diferente. Falta paixão para acreditarmos nessa união, ainda que ela não chegue a ser plenamente consumada através de carinhos físicos. Por outro lado, percebe-se emoção quando o casal está em cena, mas não o suficiente para convencer o espectador. O primeiro encontro entre Edward e Kim, para variar, não acontece de forma agradável, ela o rejeita, mas aos poucos consegue perceber a alma boa que existe dentro do corpo esquálido e branquelo do jovem, mas tal sentimento não a impede de barrar seu namorado Jim (Anthony Michael Hall) a aprontar com ele. O ciúme teria levado esse bad boy a armar uma armadilha para o mãos de tesoura se tornar alvo da fúria da vizinhança, reta final que faz alusão a caça de uma besta, mas na realidade é o próprio Edward quem corre risco em meios as pessoas normais que em casos como esse se comportam como animais irracionais. Apesar do viés romântico não chegar a explodir na trama, sua sugestão proporciona uma das mais belas cenas de todos os tempos do cinema: Kim dançando como se flutuasse no ar em meio aos flocos de água congelada que são dissipados da escultura em gelo na qual o excêntrico artista esculpe o rosto de um anjo, uma sequência tocante, singela e potencializada pela trilha sonora inesquecível de Danny Elfman, outro membro da turminha de Burton que não só lhe dedica amizade como também compreende o universo do cineasta como poucos. Nesta cena em específico está a conclusão definitiva de que o diferente e o normal podem sim conviver juntos pacificamente, todos merecem a chance de provar seus valores e sentimentos, e é esta sem dúvida a grande mensagem deste filme que quanto mais velho fica mais saboroso parece apreciá-lo, uma característica que infelizmente não continuou a ser observada nos trabalhos futuros do cineasta que geralmente causam furor quando lançados, mas que acabam sofrendo com a ação implacável do tempo. Aliás, nos últimos anos está na moda a desconstrução do sonho americano, aqueles filmes que mostram a realidade dos casamentos, famílias e felicidade de fachada, mas de certa forma Burton neste caso também fez uma sátira às convenções sociais. Toda vizinhança de Peg, e porque não seu próprio clã, leva uma vida padronizada. Todos vivem em casas muito parecidas, cultivam um gramado bem aparado e verdinho e levam uma rotina controlada por horários pouco flexíveis. Viver em função do que os outros têm ou fazem é ser normal? Infelizmente tal conceito ainda tem força e não apenas em solo americano. O frisson causado com a chegada de Edward na vizinhança se deve ao ineditismo do fato que quebrou a monotonia do local, mas não demora muito para que a população recobre a consciência e volte aos seus maneirismos, ideais e convenções, ainda que algumas mulheres demonstrem discretamente que não concordam com a revolta generalizada contra o estranho visitante de uma hora para a outra, mas não ousam sobreporem-se a autoridade de seus maridos para não ficarem mal faladas. Primeiramente previsto para ser um musical, felizmente Burton optou por seguir o caminho mais convencional para narrar Edward Mãos de Tesoura, uma história onírica, atemporal e cuja mensagem é universal afinal quem nunca se sentiu um estranho em algum momento da vida? Não foi super premiado e tampouco a crítica o aponta nas listas de melhores filmes de todos os tempos, mas certamente quem já o assistiu, principalmente na infância, reserva um lugar especial para ele em seu coração e mente, passe o tempo que for. 

Comédia - 105 min - 1990

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Um comentário:

renatocinema disse...

Disse tudo: parceria perfeita e filme que realmente marcou......a minha geração foi movida por essa pequena obra de arte.

abs