NOTA 9,0 Com traços delicados e narrativa, singela, animação francesa aborda o preconceito através de uma relação de amizade que desperta ira e medo |
Disney, Pixar, Dreamworks e
alguns esforços intensificados nos últimos anos por empresas como Fox e
Paramount. Com os avanços das animações digitais o mercado cinematográfico
ganhou muito e a concorrência acirrada fez com que os enredos cada vez se
tornassem mais inteligentes, até para também poderem fisgar o público adulto
que agora não usa mais a desculpa de levar o filho ou sobrinho ao cinema.
Tranquilamente os marmanjos podem assistir a produções animadas com a certeza
de que estão vendo uma obra tão boa quanto um elaborado filme com atores de
carne e osso. Hollywood abriu os olhos para essa possibilidade dos anos 2000
para cá e ao passo que cada vez mais busca modernidades no campo também
volta-se à simplicidade jogando certa luz sobre produções estrangeiras ou do
próprio circuito alternativo ianque que se não fossem indicadas ao Oscar da
categoria certamente não chegariam a ser conhecidas nem mesmo pelos cinéfilos
de carteirinha. A delicada animação Ernest e Celestine é
um bom exemplo. Coprodução da França e Bélgica, o longa é baseado nos contos
infantis da escritora e ilustradora Gabrielle Vicent que através da fábula
aborda a valorização da amizade acima de qualquer obstáculo, principalmente
tabus sociais como o preconceito entre raças. A trama conta a história da
ratinha Celestine, uma aspirante a pintora que cresceu em um orfanato e nunca
compreendeu o medo que outros roedores habitantes do subterrâneo tinham dos
ursos, os moradores do chamado mundo de cima. Fascinada pelo desconhecido, pois
é justamente desbravando esse outro universo que ela conhece Ernest, um grande
urso que em nada lembra a imagem da fera que fora forçada a imaginar com as
histórias sobre como os grandalhões peludos eram malvados e forçavam as ratazanas
a se refugiarem nos esgotos. Divertido, simpático e prestativo, ele ganha
alguns poucos trocados tocando música nas praças, mas garante o sustento da
família com pequenos furtos. Ernest encontra a roedora em uma lata de lixo e rapidamente
conquista a sua confiança, porém, precisam viver essa amizade escondido, pois
as sociedades de ambos não aceitam que animais tão distintos, tanto no físico
quanto na personalidade, se relacionem.
É interessante que a relação
entre os protagonistas não anula as diferenças típicas de suas espécies. Eles
procuram o equilíbrio entre suas característicos para um convívio harmônico,
mas os demais de suas respectivas castas são antiquados e reforçam a visão
mesquinha de que a única solução para manter a divisão entre os animais é
isolar os amigos. A ideia sustentada é que para ser aceito em um grupo você
deve se submeter a certas regras e imposições, mesmo que assim esteja
suprimindo desejos e sonhos. No caso da narrativa, Enest deveria aceitar que
como um urso precisa vestir a carapuça de malvado e soberano enquanto Celestine
deveria aceitar uma condição diminuta e submissa. Transportando o tema para a
realidade, é como ainda muitas sociedade machistas vivem oprimindo as mulheres
ou exercendo pressão sobre grupos de homossexuais. Contudo, a animação não investe em violência e deixa o preconceito
explícito de maneira bastante delicada. Desde pequenos tanto os ursos quanto os
ratos sabem da existência de ambos os grupos, mas convivem de certa forma
pacificamente. A exceção se deve ao fato dos ratinhos constantemente invadirem
o universo alheio para roubar dentes mais resistentes para realizarem
implantes, isso porque acreditam que uma boa dentição é o que permitirá a
sobrevivência da espécie. Os ursos também se preocupam com o sorriso devido ao alto
consumo de doces, o que pode ocasionar cáries e consequentemente a perda de
molares e caninos que tanto necessitam para se alimentarem. Compartilhando uma
preocupação semelhante, os distintos grupos se unem na primeira parte do enredo
sustentando a mensagem de que ninguém sobrevive sozinho e que sempre será
necessário algo do próximo, seja material ou simplesmente solidariedade.
Contudo, a relação entre Ernest e Celestine acaba virando caso de polícia. Eles
são condenados por infringirem as regras de convivência estabelecidas ao longo
dos anos entre as partes e os roedores, teoricamente mais frágeis e oprimidos,
surpreendem mostrando-se enérgicos durante o julgamento, cercando-se do máximo
de justificativas possíveis para afastar a todos da espécie do grupo de
predadores.
Com diálogos curtos e de fácil
assimilação, esteticamente o filme também opta pela simplicidade reproduzindo o
estilo de ilustrações dos livros originais. Com aspectos aquarelados e tingidos
em tons pastéis, é interessante observar que a sensação de rascunhado dos
personagens é acentuado na apresentação dos cenários, em geral propositalmente
inacabados. Feitos à mão, o modelo é sugestivo uma vez que serve como
ferramenta para convidar o espectador a participar da história completando o
cenário com sua imaginação. Animações estrangeiras costumam investir em visuais
diferenciados e em tempos em que a maioria dos diretores busca cores vibrantes
e formas arrojadas é muito bom ver traços e tons delicados que estimulam o
intelecto ao mesmo tempo em que passam uma mensagem sensorial, assim mantendo
quem assiste com a atenção totalmente focada motivado pelas surpresas que as
próximas imagens podem revelar. Só pela diferenciação estética, Ernest e Celestine já merecia atenção por
remeter automaticamente a uma animação nostálgica como se fosse uma pérola do
gênero resgatada dos tempos das fitas cassete, mas ainda soma-se ao conjunto
uma inteligente e agradável fábula capaz de fazer os humanos refletirem e
repensarem seus atos em relação aos seus semelhantes. A partir de uma história
de amor e cumplicidade que remete ao enlace e proteção de um pai e uma filha, o
roteiro de Daniel Pennac aborda de forma leve a maneira como o preconceito
entre raças e o medo do que é considerado anormal afasta as pessoas. Mais que
isso. As força a aderirem à segregação, fechando-se em grupos unidos por
características e interesses em comum, mas sem brecha para os diferentes.
Reiterando essa separação podemos destacar as cenas iniciais em que uma velha
rata, a governanta do orfanato, conta a história dos ursos malvados usando a
tática de incutir medo do desconhecido, algo que felizmente não afeta nossa
altruísta heroína e tampouco seu fiel e grande amigo. Com direção de Stéphane
Aubier, Vicent Patar e Benjamin Renner, o longa merecidamente ganhou o prêmio
máximo de seu país, o César, além de receber uma menção honrosa no Festival de
Cannes e uma indicação ao Oscar de Melhor Animação, assim ganhando certa
projeção e felizmente sua mensagem perpetuada a fim de chegar às mentes
daqueles que estão em desenvolvimento e nos representarão no futuro e ainda a
tempo de ampliar os horizontes de quem hoje alimenta preconceitos tolos e
ideias antiquadas.
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